terça-feira, outubro 14, 2008

Desinfestado no Limbo

                                 

Cerpin Taxt encontrava-se acima da oscilante errância do tráfego rodoviário, sentia os joelhos a fraquejar. Mergulhado numa obscura dessincronização, sabia que o seu tempo aqui estaria em breve terminado com uma hemorragia interna percebida através da aberração da sua presença cadavérica. Não mais ele carregaria a seus ombros o peso da paixão. Jamais se reconheceriam descendentes seus. Afluências auto motrizes eram lançadas através das veias debaixo da sua pele. Seria este o único caminho que ele poderia encontrar? O suor ornamentava a margem da sua sobrancelha, já não era possível voltar atrás. Os seus maxilares tilintavam uma gaguez gélida, o seu estômago inchava devido aos desconfortantes arrotos, demasiado nervoso para olhar para baixo, olhar em direcção à convidativa colisão com o cimento. Ele ofereceu a si próprio nada mais do que esta escolha.

Entre duas montanhas que reclamavam uma qualquer irreflectida verdade bíblica, Cerpin era sensato, como se tudo aquilo tivesse sido devolvido por um cliente insatisfeito, um atleta medalhado com tremores reumáticos. Quando levantado, este último prémio iria rodopiá-lo e arrastá-lo pela lama. Ele sempre conviveu com a negação, mas desta vez não queria esperar cá fora enquanto a festa continuava sem ele.
A estrada que adornava o viaduto pulsava uma torrente de reacções repelentes nos olhares. Os carros passavam, pasmados…”quem é aquele caralho, armado em trapezista?!”, pensava um condutor, a toda a velocidade. “Mãe, olha, aquele menino vai brincar!”, gritava uma menina de treze anos, tentando captar a atenção dos seus pais, numa velha carrinha cheia de material agrícola. Algures nos quilómetros daquela estrada, a “orquestra” continuava a tocar. Molas enrolavam-se furiosamente nos tendões das suas pernas…elas estavam prontas. As suas lágrimas desintegravam-se no ar vespertino, agora ninguém conseguia evitar isto. Ele vagueava por estrofes em analepse, excluídas desta realidade, o seu corpo tomava forma…uma meia-lua morta num mergulho de Fevereiro…um emblema para todos verem…um soturno composto de fracturas, pacientemente aguardando pela abertura do portal…caindo a pique, desejando ardentemente uma resolução muda (“vou mostrar-lhes como é…”). Beijou o vento fraco que roçava a sua face, defecando um verso que cantava “yo ya me voy, y nadien me recordara”. Sorriu do alto do seu pedestal, aguardando a oportunidade, murchando em pecado…o gato entre porcos podia agora gatinhar de volta para a sua verdadeira família. Talhando um último suspiro, faiscando diamantes nos faróis, para sempre manchados com selos cor de vinho.

Cerpin sempre foi um pouco possuído pelos seus rabiscos quiméricos. Entre os intervalos para o almoço e durante as aulas, talvez até no seu sono, tu irias dar com ele a desenhar neo-culturas, doentes e grotescas. Aquele foi o portal que ele criou, sujando as mãos, arrancando os cabelos, momentos de inspiração aguardando nas asas. Isto servia bem os seus propósitos, já que estaria desnutrido sem este escape.
Tão vívida era a forma como eles lhe falavam, leais à sua folha. Ele nunca reparou se mais alguém os conseguiria ouvir…também não interessava, porque o mais importante era o que eles diziam…e como o diziam. Estavam mutuamente apaixonados desde o diagnóstico dos seus distúrbios. Ele bateu em portas que o resto do mundo sabia não existirem. Blocos de notas em espiral emprestando variedade à mediania…Um jogo espiritual que evoluía penosamente, revestido de uma cinza rasa esperando pela rejeição, sempre à espera de uma deficiência. “Un juramento sin forma,...me escape de las montanias, salte veneno”...uma escápula que falhou o tiro de partida. Podes dizer que ele era chicoteado pelo calão da sua quimera. Cerpin Taxt, sempre o apaixonado saco de pancada...E disto nasceu uma tosca construção de desconcertantes hieróglifos. Ele desejava ser desejado. Ansiando por resultados, uma face cerrada, um expatriado deformado. Eles foram feitos um para o outro. Eles definiam-se mutuamente, e em breve seriam um só.

                              

Mas, espera...Não terá isto já acontecido antes? Um rasto de muitos anos. Relembrando os eventos, havia um rancor nos diversos juízos. Um projecto de déspota, desconhecido até de si próprio...ele começou a descarrilar. O corcovado de sangue frio seguro por uma ligadura eléctrica estava sempre a ter dificuldades em permanecer vivo, quanto mais remediar os estragos no epicentro dos seus terramotos. Isto havia acontecido antes. Numa tarde opaca, defendendo-se após ter cometido um erro, Cerpin foi apanhado precavido, em sentido, na linha de fogo de uma batalha feroz. Um barril selado de ebriedade encontrou o seu caminho através da raiz dos seus próprios cabelos, atingindo-o em cheio no crânio. Uma enxaqueca para curar todas as dores de cabeça. Talvez estivesse a pedi-las? Talvez fosse a desculpa que necessitava para atravessar a fronteira das clarividências domiciliárias. Através de aneurismas litúrgicos, no púlpito estavam os meios. Pelos estilhaços de uma altercação dolorosa, ele deixou o ponto de impacto, sim,  deixou-o partido para tratar as suas feridas. Talvez ele tivesse cometido um erro, mas erros são tudo aquilo de que os seus sonhos são feitos.
Flexíveis e quentes, os cobertores taparam o seu corpo. Aquela mão cheia de morfina que a sua mãe havia deixado quando morreu viera mesmo a calhar. Este foi o chuto que marcou o início. Dentro e fora da realidade por uma semana até ao fim, a sua embaixada viveria na infâmia. Seria este o cenário no qual eles o contactaram pela primeira vez, a ele, o déspota em projecto, a lutar para se manter vivo.

Ele havia sido nomeado...rotulado e colocado na profunda inundação de pescoços torcidos, injectando-se às torrentes para o alívio da sua confusão. De fora, nós havíamos observado o seu recém-adquirido orgulho derrapante. Um verdadeiro príncipe entre os mortos-vivos. Um cruel no limite da sua graça, asfixiando um oráculo de musas, preso numa amputada inoperância arquitecto-tecnológica cujos ferimentos superficiais sentiam-no a baquear para o chão cada vez que bandos de contusões e obstáculos enterravam-no fanáticamente no seu atordoamento. Com a sua armadura de pele quebrada, ele tinha-se agora tornado a carcaça da caricatura imune às vergastadas no seu esfolado braço direito, destinadas a corrigir a imagem de um pedinte a quem foram dadas roupas usadas. Alguém que havia bebido com os mochos, sob o chuveiro de lacerações que caiam a bom som e eram tão traiçoeiras como areias movediças. Estava empilhado numa onda gigante de multidões, tornando a sua evolução imperialmente sinistra. Os corpos não aguentam muito mais desgaste e rasgões antes do colapso. 


                                      de-loused in comatorium   1ª parte
                                      tradução: Pedro Sanguessuga

terça-feira, setembro 23, 2008

The Mars Volta - Inertiatic ESP

Após um interregno "postabático", eis-nos de volta. Na cerimónia de encerramento da primeira "prestação" de serviço (post)al, escolhi uma mensagem veiculada pela música da autoria dos sempre instintivos Pearl Jam, que parecem ter um tema adequado a cada situação. Agora, que estamos de volta, resolvi iniciar uma odisseia no mundo da tradução, já que a minha capacidade criadora e inventiva foi grandemente desgastada, ou investida, na pequena odisseia pela qual passei, e da qual tantas lições retirei e ainda retiro, qual Ulisses disfarçado de velho, regressado à amada "pátria". Tentarei intercalar a continuação da fábula que vos tinha apresentado anteriormente com, vamos lá então a explicar, a tradução de um "storybook" (começa bem, a tradução...") presente no trabalho de uma banda que me tem acompanhado desde há um ano para cá e, agora que estamos de volta, parece ser pertinente aprofundar um pouco o alto grau de conceptualismo presente na sua obra: são os Mars Volta.
Para já, ficamos com este Inertiatic ESP, em breve explicarei o seu significado, baseando-me, de forma limitada, nas explicações dos elementos da banda, assim como no próprio storybook, assim como, ainda, na minha visão pessoal, de modo a que, aos poucos, possa libertar mais algum suor criativo.

terça-feira, julho 22, 2008

Zé Manel (1968 - 1998)
















Eu usei martelos feitos de madeira,
Joguei jogos com peças e regras.
Decifrei truques de balcão,
Mas agora estás ausente, não consigo perceber porquê.
Inventei adivinhas e piadas sobre guerra,
Atinei com números e com o que fazemos com eles,
Compreendi sentimentos e compreendi palavras,
Mas como foste tirado de nós?

E para onde quer que tenhas ido,
E para onde quer que possamos ir.
Não parece justo, o hoje desapareceu.
A tua luz está agora reflectida,
Reflectida de muito longe.
Nós éramos pedras, a tua luz tornou-nos estrelas.

Com a respiração pesada, arrependimentos despertados.
Retroceder páginas e dias que só poderiam ser passados
Juntos, mas estávamos a quilómetros de distância.
Cada polegada entre nós torna-se anos-luz.
Não há tempo para ser vazio, nem para poupar na vida,
Oh, tens que gastá-la toda!

sábado, junho 28, 2008

Maradona

Para quem não liga muito às coisas da bola, este foi um futeboleiro que caiu nas malhas da droga, fruto, certamente, de uma certa incapacidade psicológica para lhe resistir. Mas o que muitos não sabem é que Maradona deixou de ser criança aos 15 anos, fruto, certamente, do enorme talento que nos proporcionou uma obra artística irrepreensível; Muitos também não sabem da pesada carga simbólica que ele sempre carregou aos ombros: Defender uma Argentina que havia perdido filhos na guerra das Malvinas, ilhas que a Inglaterra colonialista havia tomado por força e das quais não queria abdicar, o que elevou aquele jogo dos 1/4 final do México 86 ao estatuto de épico, devido ao golo marcado com a mão e, sobretudo, àquele em que ele deixa meia Inglaterra pra trás desde o meio campo; Defender uma Nápoles e um sul de Itália carenciados, com reputação de campónios e mafiosos, isto, claro, aos olhos dos ricos de Turim e Milão; Finalmente, como que um epílogo destas duas batalhas, surge o Mundial organizado por uma Itália sedenta de vitória, 4 anos depois do mexicano: o 1º jogo opõe Argentina e Camarões, na cidade de Milão. Os milhares de milaneses que enchiam o estádio aplaudiam os Camarões e vaiavam os argentinos, reservando insultos especiais para um certo jogador do Nápoles...A Argentina perde, Maradona felicita os adversários, mas não deixa de dar uma última prova da sua sagacidade e audácia: "Perdemos bem. Mas saio feliz, porque pela primeira vez vi os milaneses a não serem racistas..." A Argentina perde a final com a Alemanha, depois de eliminar a... Itália.

Aliás, todas as suas entrevistas e intervenções davam conta de um homem a suportar o peso ideológico e desportivo que o futebol acarreta. Insurgia-se contra as elites do poder, contra uma certa hipocrisia das leis do jogo e da sociedade em geral (o Papa J.Paulo II criticou-o pelo dinheiro gasto no seu casamento. Maradona respondeu: "pois, mas uma vez fui ao Vaticano e reparei que os tectos eram de ouro..."). No futebol actual só J. Mourinho lhe chega aos calcanhares. Porque, tal como Diego, também ele tem ao seu lado o que mais interessa neste deporto: os praticantes. Cristiano Ronaldo é muito bom, mas há que contextualizar: só diz asneiras e não tem a capacidade de liderança que o índio argentino já tinha aos 18,19. E o que Ronaldo faz com uma bola Diego fazia com uma laranja. Maradona meteu-se na droga ainda jovem, mas a maior parte dos drogados que conheci sempre me geraram compaixão pela sua sensiblilidade. Os colegas e os adversários adoravam-no, viam nele um líder e um capitão que nunca se escondia tanto no jogo como fora dele e estava sempre pronto a aceitar mais responsabilidades do que aquelas que lhe eram devidas. Rui Zink disse uma vez que o papel social de Maradona é tão complexo que merecia ser estudado nas Universidades. Estamos a falar de um míudo que de repente foi lançado às feras sem qualquer tipo de protecção, como em Barcelona, o seu primeiro clube fora da Argentina, clube implacávél no que toca ao profissionalismo dos seus atletas, por mais jovens que sejam. Digamos, faltava-lhes um Alex Ferguson. E a forma como esse míudo se tornou um gladiador vitorioso, capaz de contagiar todos com sua alegria pelo jogo. Há dois ou três anos ia perdendo a última batalha, mas felizmente o seu coração resistiu.

Não querendo fazer aqui uma tese, resta-me perguntar se Diego Armando Maradona terá sido o último futebolista romântico, antes da globalização e dos milhões que imperam no futebol e na sociedade actual.

Aqui fica uma humilde homenagem minha:

"Peito de pombo, cheio de ar
Cabelo rijo como carapinha
Um futebol que para sempre vou recordar
Um pé esquerdo que era uma ventoinha

Homem com sonhos de criança
Criança com arte de homem
Campeão no auge da confiança
Tinha o que os outros não têm

Nápoles, cidade triste e danada
Por camponeses e pobres habitada
Renasceu após a sua chegada
E viveu a sua época dourada

Passes e remates milimétricos
Para os adversários argumentos tétricos
Recepções e dribles diabólicos
Da perfeição no jogo simbólicos

Mas o jogo chega ao fim
Resta continuar a vida de mortal
Putas e coca é algo ruím
Até Cristo teve a tentação carnal

Obrigado pelo êxtase
Do futebol total foste a síntese
O companheirismo, o espectáculo, a alegria
Havemos de nos reencontrar um dia.

sexta-feira, junho 13, 2008

Cap. 2: O sol não brilha só na T.V.

Telma dormiu, sonhou, e acordou para nunca mais ver a escuridão da noite.
Após séculos de desenvolvimento tecnológico, chegara finalmente o teste final à supremacia humana sobre a natureza. A diminuição da espessura da camada do ozono revelar-se-ia o terror planetário que os mais pessimistas já haviam aventado. O Canadá, há 25 anos atrás, foi a primeira região a sofrer as convulsões mais violentas; os E.U.A., temendo a proximidade, deram os primeiros passos num possível e provável plano de adaptação às novas condições. Os dias alongavam-se, as noites eram curtas. Para surpresa da comunidade científica, a radiação ultravioleta revelou-se dócil quando comparada com o alargamento do espectro de luz visível. Os cancros de pele, a destruição das proteínas, do ADN, as alterações irreversíveis nos sistemas imunitários e na vida biológica não eram nada comparados com o que um dia de 24 horas de sol pode causar.

Quando cheguei a casa depois de mais um dia de trabalho encontrei a Telma a rezar. Fiquei um pouco embaraçado, mas mesmo assim não fui capaz de tirar os meus óculos escuros, ainda pendurados nas minhas orelhas. Tal como ela, também eu estava a desenvolver um complexo depressivo relacionado como a falta do olhar humano. A ironia aqui patente é que, por muito eficaz que seja um olho, este não consegue funcionar na ausência da luz. Antes esta movimentava-se em linha recta, por isso se observássemos um objecto iluminado por uma lanterna e puséssemos algo opaco entre os nossos olhos e o objecto, a luz não passava. Isso era dantes. A influência dos raios ultravioletas criou um novo espectro de luz que nos envolve tal qual o ar que respiramos, daí a ausência da noite, mesmo com a terra a girar. Mesmo sem lhe perguntar percebi que Telma recordava os primeiros meses em que a visão disparou os nossos sentimentos. Não foram os nossos empregos nem a família a ditar a nossa aproximação. Foi o modo como nos olhámos e amámos sem trocar uma palavra. Rezar foi o menor dos efeitos causados pelo consumo excessivo de anti depressivos. Era uma psicose controlada, mas transformou-a em alguém que estava fechada numa redoma onde a tanto a luz do sol como a luz da sua alma estavam a apagar-se lentamente.

“Um porta-voz oficial do projecto Human Light anunciou que os esforços conjuntos levados a cabo pela N.A.S.A. e pela A.E.E. atingiram um ponto alto esta manhã, ao verem concluído o período experimental do satélite Steve Jobs, o qual terá uma gigantesca capacidade de ultrarefracção estratosférica, que impedirá uma chuva de raios ultravioleta sobre o nosso planeta, garantindo, mesmo assim, um aproveitamento da energia solar em beneficio das centrais nucleares e eléctricas.”

Uau! As pessoas estavam a percorrer um caminho sinuoso para manterem a sanidade mental, no entanto os governos haviam unido esforços a fim de manterem o bom funcionamento das infra-estruturas produtivas. E mais, com a cada vez mais abundante energia solar, os locais de produção passaram a ser abastecidos durante 24 horas por dia, o que reduziu para metade a taxa de desemprego ao nível mundial, aumentando 3 vezes a produtividade e reduzindo um terço dos gastos na produção. Deixaram de ser necessárias técnicas de aprovisionamento, já que qualquer compra era feita através de serviços online, assim como pontos de venda, devido à chegada das compras ao domicílio. Está claro que o petróleo ainda mantém a sua primazia no que diz respeito às fontes energéticas, mas agora não é um carro ou uma máquina que queremos a trabalhar, mas sim o nosso cérebro. Infelizmente, demasiada exposição à luz solar afectou as células cerebrais de grande parte dos seres humanos. O sistema nervoso central funciona com a ajuda do líquido cefalorraquidiano, o qual irriga uma parte do cérebro. Ora esse líquido foi gravemente afectado com a prolongada exposição à luz solar. Mas o petróleo é composto por átomos de carbono e hidrogénio, o que permitiu desenvolver um tratamento baseado nestes elementos com vista a suprir a falta do líquido cerebral: Petrocer. Comercializado em pequenas latas, tornou-se a droga legal mais abundante, seguida de duas ou três marcas de antidepressivos. No entanto, os efeitos secundários não eram inocentes… Quando me foi comunicado que era estéril, não senti grande comoção ou surpresa. Eu partilhava a opinião de pensadores como Rasim ou Teodoro, sobre a sobrecarga de população que o planeta sofria há já vários séculos. O excesso de pessoas a exercerem aquela pressão sobre os recursos disponíveis era a grande causa para os problemas sociais, económicos e ambientais. Telma também não se sentiu muito afectada. Apesar de tudo, ainda éramos felizes. Pelo menos mais felizes do que boa parte da população.
Nesta era, as cidades eram o palco de algumas mudanças que diminuíam a espécie humana a um ponto em que esta perdeu a sua identidade histórica para se adaptar às novas condições: os olhos constantemente vedados pelos óculos escuros; o aumento da carga de trabalho para aumentar a produtividade; a ausência de actividade lúdicas e de inter-relacionamento pessoal; a possibilidade de colocar os filhos na “Matur”, uma instituição que acolhia bebés de famílias abastadas, na qual estes permaneceriam durante 15 anos, altura em que atingiam a idade adulta, permitindo aos pais trabalharem sem a preocupação de exercer actividades pedagógicas não lucrativas.
Para quem já nasceu na era dos óculos escuros, o sistema de acasalamento passou a ser ditado pela circunstância profissional e financeira, ou seja, cada cônjuge tinha o dever de retirar o máximo do potencial do outro, tal como numa fila de ciclistas em que o último está sempre a ir para a frente. Portanto eram feitos estudos psicotécnicos na Matur, onde eram dadas às crianças um leque de opções profissionais do qual haveriam de escolher uma. A partir dessa escolha, a criança era condicionada a pensar, vestir, agir, sentir como tal. Quando saísse aos 15 anos estava já pronta para exercer o seu papel na sociedade. A esta nova espécie emergente chamou-se humatónomos. Mas nem todos os humanos estavam transformados. As itinerantes feiras do passado ainda mantinham alguma da boémia e da inconstância própria dos seres humanos. Mas estas eram sazonais e nómadas. Mas ainda havia comunidades inteiramente saudáveis, como eu viria a perceber numa viagem a África, agora declarada oficialmente como o “caixote de lixo do mundo”.

quinta-feira, junho 12, 2008

CAP. 1: O sonho do Barman: o relâmpago vem antes do ruído

Esta é a história por trás do “tenha uma noite fantástica”, de Baltazar Gomes

Ser completamente honesto com ela nunca era fácil. As suas reacções deixavam-me à chuva, ensanguentado e com a visão enevoada pela poluição do mundo que eu era forçado a encarar: olha à tua volta, dizia ela, olha o que tens à tua espera! Toda esta imundice vestida com fato de gala, um oráculo profanado pela alma mais caridosa e incorruptível, o que julgas que encontrarás nesse Tártaro da tua liberdade?
Telma tinha razão. Onde poderia eu ir? Com os galopantes preços da gasolina, seria quase impossível chegar a nordeste a tempo da feira. A extinção dos transportes públicos, outrora a quintessência da superioridade humatónoma, tornou-se um fardo demasiado pesado para quem aspirava a ser feirante. Aspirava, sim, pretérito…
No entanto, eu treinava em casa. Arduamente, mas com muito gosto. E muitas vezes partilhava esse prazer com a Telma, de forma mais orgânica e inconsequente. E um sorriso seu fazia tudo o resto valer a pena, tal qual como naquela noite em que falámos pela primeira vez...

Toda a minha caixa de ferramentas desejava-a ardentemente desde que a tinha visto num comboio, no tempo em que estes eram necessários. Mas nesse ano eu estava já contaminado, razão que, embora a doença ainda não impedisse a auto determinação, acabou por influenciar o meu julgamento e posterior bloqueio comportamental. Pôrra. O que eu estava a perder! No entanto, após meses de viagens e intersecções oculares, fui presenteado com aquilo que todos os humanos ainda sãos desejariam ver por uma vez na vida: o sorriso da Telma. Eu gelei, o que podia fazer? Mas ainda assim consegui alargar os cantos da minha boca durante dois ou três segundos, o suficiente para aliviar-me e devolver-lhe alguma daquela tensão. Uii! Escusado será dizer que nesse dia voltei para casa com a roupa a fervilhar. Todos os poros da minha pele assemelhavam-se a géisers, o meu cérebro disparava imagens constantes daquele momento e de outros que nunca tinham acontecido nem nunca viriam a acontecer…estava num completo êxtase…sentia a sua falta, e nem sequer a conhecia.
Não admira que eu tenha caído que nem um patinho. Na noite em que a conheci tudo foi perfeito. Eu não pensei que tivesse sido perfeito, mas mais tarde ela confessou-me que se sentiu um pouco idiota ao falar comigo, e isso demonstrou-me que há um grande poder na simples experiência das coisas e das sensações. E quanto confuso e perturbador esse poder é. A situação era típica: o gajo estava a chateá-la, ela desata a disparatar “deixa-me em paz, não há homens de jeito…”, sobe as escadas e depara-se comigo: “não há homens de jeito, pois não?” Eu só consegui abanar a cabeça. Adivinhem em que direcções. Ainda nem a conhecia e sentia que já estava a pagar o preço do amor irreflectido. Então resolvi atirar-lhe uma frase do John Lennon, que eu conheci através de uma personagem do The Office: “ a vida é aquilo que acontece enquanto estamos demasiado ocupados a fazer planos.” Não omiti a origem autoral desta filosofia presente na música, “beautiful boy” (dedicada a Sean), e, nessa mesma noite, antes que ela adormecesse, telefonei-lhe, só para lhe dar a ouvir aquela doce melodia…


quinta-feira, junho 05, 2008

Tortilla

Em tempos partilhei casa com a Rebeca, uma espanhola de Ponferrada. A partilha era meramente contratual, já que ela vivia com o namorado. Mas para iludir os pais precisou de um endereço que servisse de fachada à vivência "conjugal". Bom, a situação era estranha e ainda hoje estou para perceber o que se passou, já que os pais viviam a mais de 200 km. No entanto, ela deixou um legado culinário que me acompanha até hoje.

A tortilha espanhola é boa.

Para criá-la, o mais importante é ter batatas, óleo/azeite, a tecnologia do fogo e ovos. Convém também, e isto já depende dos gostos, ter cebolas, pimentos, tempêros, chouriço, salsicha, salsa, restos, enfim, tudo o que se quiser meter lá pra dentro.
Eu gosto assim:
Encho metade de uma frigideira de tamanho médio com óleo, depois bastam 2 batatas médias, algumas rodelas de chouriço ou salsicha,uma cebola média, um pimento, folhas de salsa, um dente de alho...tudo isto cortado finamente e metido lá pra dentro. Deixo cozinhar em lume médio durante cerca de 10 min., vou temperando, mexendo, pensando na próxima Champions sem o Porto, procurando o coador. Quando a mistela estiver morna, há que retirar a gordura. Enquanto o coador faz das suas, bato 2 ovos. Acendo o lume, volto a colocar a mistela na sertã, misturo-a com os ovos mexidos, conferindo a consistência necessária. Vai-se apalpando com o garfo, vai-se abanando a sertã, para ver se a tortilha já está compacta. Depois, com a ajuda de um prato, vira-se o lado. Mais um minutinho e tá pronta.

quarta-feira, maio 21, 2008

Bom Dia

Hoje eu tenho asas nos pés
só me apetece dançar
há tantas caras bonitas
tantas mãos a acenar
eu sou um balão colorido e mágico

Ontem já passou
amanhã pode ser bom
mas hoje é o melhor dia que há
nem preciso de fé
eu felizmente não preciso de nada

Hoje eu sou um homem contente
ao serviço do amor
sou o próprio sonho
e desconheço a dor
eu sou o vagabundo mais feliz que existe

Hoje eu sou o mais forte dos deuses
mais cretino que a morte
estou por cima da queda
mais seguro que a sorte
eu sou o universo inteiro a sorrir
- bom dia!

J. Palma

quarta-feira, maio 14, 2008

segunda-feira, maio 12, 2008

quarta-feira, maio 07, 2008

Dá-me o libro, já!!

Ler e amar na adolescência: dois verbos e um substantivo que, aparentemente, não têm grande relação entre si. A menos que retiremos a adolescência da equação. No entanto, fruto da imaginação, pesquisa e dedicação de uma professora do Algarve, estes conceitos reuniram-se num grande bacanal temático e, de certa forma, tentam fazer sentido quando usados na mesma frase. Um sentido não contrastante, mas de complementaridade.

Ler e amar são bastante parecidos: ambos requerem alguma paciência (é claro que há livros e livros..); são potenciais geradores de enxaquecas (embora as últimas 5 letras formem algo tradicionalmente revigorante quando consumado); e muitas vezes são abandonados a meio do processo (aqui há uma solução: porquê tentar ler "Os Maias" quando podemos ir lendo revistas semanais? Antigamente era assim que os romances viam a luz do dia...).

Amar e adolescência equiparam-se pelo grau de abstracção do conceito, ou seja, é impossivel delimitar e quantificar o amor ou o estado de adolescente, onde começa ou quando acaba. No caso do amor podemos até fazer uma analogia com a palavra Deus (não confundir com dEUS): ninguém realmente o verificou, mas que existe, existe. Ou então, não existe, mas que queremos acreditar que sim, lá isso queremos. Ambos os vocábulos são também altamente polissémicos, característica conferida, como sempre, pela comunidade falante. Assim como quem ama hoje pode odiar amanhã, para voltar a amar no dia seguinte (sentimentos dirigidos à mesma pessoa, entenda-se..), também usamos a palavra Deus para ajudar hoje e cometer genocídios amanhã. Amor e Deus, duas palavras convenientemente ocultas...A inferência que normalmente fazemos em relação ao amor prende-se com o envolvimento entre duas pessoas. Mas não podemos menosprezar a importância do amor próprio, nem o poder auto-destrutivo da sua falta. E a este respeito, é bem sabido que a adolescência é aquela fase etária da indefinição e da insegurança. Em muitos casos trata-se de uma questão de sobreviver. Por outro lado, no amor tradicionalmente aceite, é bastante estranho ver adolescentes a comportarem-se como casais de meia idade, a abdicarem dos seus primeiros anos de descoberta sexual e social para se refugiarem no dúbio conforto do compromisso.

Ler e adolescência. Bom, se o binómio amar/adolescência já era arrojado, então este, à luz dos nossos dias, parece-me herético. O ligeiro ascetismo inerente à prática da leitura não combina com o desejo de viver a vida toda numa semana. É que agora é mesmo possível viver a uma velocidade incrível, e, aparentemente, não há muitas razões para quererem parar e pensar, simplesmente porque as instituições sociais, educativas e profissionais são acéfalas e autómatas nos seus processos. E as novas tecnologias encontraram nos seres humanos os escravos perfeitos para uma crescente subjugação. Resumindo, quanto mais perfeita a tecnologia, mais o ser humano deve "aperfeiçoar-se" para dominá-la. E esse aperfeiçoamento não passa necessariamente pelos livros, a menos que sejam especializados. Não. Esse aperfeiçoamento passa por deixarmos de fazer as coisas que nos definiam como seres sensíveis, e ler era uma delas. Praticar desporto era outra. Levar os filhos ao parque era outra. Valham-nos os avós reformados!( mas com quem os putos não podem jogar à bola..)

Voltando ao livro da professora do Algarve: não o li (dificilmente o farei). Mas antes que me comecem a criticar (ou se já estavam..) por falar de um livro sem o ler, digo-vos que me vou socorrer do provérbio anglófono - "judge a book by its cover" -, o qual é uma metáfora para reprovar os preconceitos. Numa entrevista, o Sean Penn inverteu esta máxima ao explicar o porquê de ter realizado o "Into the Wild". Ele disse que, enquanto esperava o almoço, resolveu dar uma espreitadela numa banca de livros situada por perto, quando a capa do livro de Jon Krakauer o hipnotizou de tal forma que se sentiu compelido a lê-lo. E não se enganou. Já não digo o mesmo desta minha análise, no entanto o prazer de escrevê-la e gerar repostas é já, por si só, satisfatório.

A capa do livro, então, retrata dois...adolescentes, uma menina e um menino, deitados sobre um tapete a folhear um livro. Algo do género: "vamos estudar funções sintáticas para minha casa?", "ok, eu levo as bolachas e um cd dos EZ Special". E é que acabam mesmo por ficar a estudar, para deleite da mãe, a qual ia dando a frinchadela periódica. Eu nem ia referir isto, porque vi uma entrevista da professora e ela pareceu-me extremamente bem intencionada. No entanto, ao convidar o Dr. Daniel Sampaio, responsável pelo prefácio, para embelezar o lançamento do livro, acende-se cá dentro uma luzinha crítica, à qual muita gente chama mania da perseguição, ou mania de ser diferente, ou o que quer que seja. Já nem peço para alterar as visões tradicionais do amor, as quais, mais do que na sinceridade do sentimento, parecem assentar na homofobia que caracteriza quase tudo o que é funcional nesta sociedade. Mas não há problema, porque a orientação sexual só se define a partir dos 20 e tal anos. Durante a adolescência somos, obviamente, heterossexuais. Um menino e uma menina. Caramba, convidar o Daniel Sampaio é relegar para 2º plano tudo aquilo que foi postulado pelo Freud, e que, no nosso inconsciente, lá está, sabemos bem que é verdade: a sexualidade desempenha um papel extremamente sobrevalorizado e incontornável. E o Freud nem sonhava que os mass media, completamente controlados por uma minoria economicamente poderosa, iam distorcer a verdadeira natureza desses impulsos, de forma a consagrar uma conduta sexual como aceite, relegando as outras para um plano de disturbio. E já nem falo do sentimento do adolescente que tem que viver baralhado e na penumbra...E quando a maior referência nacional na psicologia juvenil condena publicamente a homossexualidade, quase que acreditamos que é uma doença. A isto chama-se lavagem cerebral, e, aparentemente, ele não escapou a essa parte. Mas tenho a certeza que no interior do livro esta questão será abordada. Resta saber se na linha da homofobia ou na do livre arbítrio. Mas com este prefácio, não digo nada.

Durante a entrevista ela pareceu bastante estranha. Referiu que, durante dois anos, ficava nos intervalos a falar com os alunos, em vez de ir para a sala dos professores. Mas que raio de profissional prefere ficar ao relento a aturar anormais em vez de, ao sair de uma sala de aula, se enfiar de imediato noutra sala, onde os complexos juvenis têm agora forma adulta? Hummm. Ou então, em vez de escrever um livro sobre o prazer da leitura associado aos afectos e à sexualidade juvenil, porque não escrever algo mais produtivo? Prof. Maria Gabriela, cá vai uma ideia: "Como Tirar Um Telemóvel em 5 segundos"; ou então "O Demónio de Saias: Relato de uma Noite com a Ministra da Educação".

Olha, se calhar até vou ler o livro. Alguém oferece-se para mo oferecer?

quarta-feira, abril 23, 2008

Canção de Deus

E aqueles pés, antigamente,
Caminhavam na nossa planície estéril?
E aquele Deus antropocêntrico,
Enfraqueceu com os seus pensamentos
E crenças todas por verificar?

Não me parece, Ele está lá em cima
Enquanto os outros estão submersos
Em competição com aqueles com quem
Trocaste a tua vida para abençoar a tua alma

E eles disseram-te como pensar?
Aspiraram da tua a mente
O veneno e a autonomia?
Ou tu escapaste o escrutínio,
E regalaste-te com a depravação?

Agora todos nós vemos
A "religião é apenas inutilidade sintetizada,
Desnecessária na expansão da
Eficiência cultural e global"

E tu não receias este impasse
Que construimos para o nosso futuro?

Tão perto, mas ahh..tão duro.

v.o. Graffin

O poema de Maria

Estamos na nossa terra
Podia ser em qualquer lado
Suponho...
Mas eu vivo aqui

Este é o meu apartamento
O meu quarto
O meu mundo

Esta é a minha cama
Mas este não é o meu corpo
Nunca mais...

Esta não sou eu

Ele está a violá-la
A ela
E depois ele vai matá-la, tal como disse

Eu estou a falar através do estômago dela
Consigo vê-lo através do umbigo
Eu sou a sua gémea

As unhas dela não conseguem penetrar a pele
Mãos atadas com a corda que ele encontrou no átrio
A sua boca amordaçada não consegue gritar
Vendada, ela nunca vai saber como ele é
Mas vai imaginar por muito, muito tempo
Que todos os homens
São ele

No entanto ela consegue ouvir tudo
E consegue cheirá-lo
Ele tresanda

Eu estou a falar através do estômago dela
Consigo vê-lo através do umbigo
As minhas mãos estão livres
Escrevo isto enquanto está a acontecer
Ele não se vai vir dentro de mim
Eu não vou morrer aqui

Ela ouve o gato
A ziguezaguear pelo apartamento
A miar a bom som
Testemunhou agachado no escuro
E viu-o a entrar pela janela da cozinha
Enquanto ela dormia
Está a miar a bom som

Miando "porquê?"

É a única testemunha
Vamos gato, fala!
Está bem gatinho
Eu já estou gelada por dentro
Está bem
Isto já não sou eu
Está bem gatinho
Quando fotografarem o meu corpo nú
Vou ouvi-los falarem da

alegada vítima

Não vou perceber de quem é que eles estão a falar
Todos eles vão ser homens

Mas está tudo bem gatinho
Ele
Não me pode tocar
Apenas me pode foder

Ele insiste que me vai matar
Mas não vai

Quando ele acabar
Vai levar os lençóis da cama
Vai apagar todas as privas do crime

Menos eu

Ele vai à minha casa de banho
Vai mexer nos meus armários
Abrir a torneira da água
E ele vai lavar as mãos

Limpinho

v.o. Martha Linehan

Quem me dera ter-te aqui

Então, achas que consegues distinguir
O Paraíso do Inferno
O céu azul da tortura
Distingues um campo verdejante
De um frio carril de ferro?
Achas que consegues?

E conseguiram eles que tu trocasses
Os teus heróis por fantasmas
Cinzas escaldantes por arbustos
Calor humano por uma brisa gelada
Frieza reconfortante para variar...
E tu trocaste
Um papel secundário na revolução
Pelo papel principal numa prisão

Quem me dera, quem me dera ter-te aqui
Somos duas almas perdidas
A nadar num aquário
Ano após ano
A percorrer o mesmo velho trilho
E o que encontramos?
Os mesmos velhos medos.
Quem me dera ter-te aqui

v.o. Waters, Gilmour

Pelo mundo fora

Um cão ao meu lado
Deus no céu
Neve a cair
Gela o meu corpo
Não consigo avançar
Mas uma vez mais
Vou avançar

Pelo mundo fora

Cuspido para um canto
Do topo do céu
Lentamente mergulho pela nuvem
Dois pés aterram num chão diferente
Não podes viver facilmente
Nem sequer podes falar
Mas todos eles falam

Pelo mundo fora

Vou-me encontrar contigo por lá

Natureza sem animais
Nem sequer um pássaro
Quando um lado está quente
O outro lado da lua não está
É como um passeio
Talvez um dia
Eles o façam parecer um passeio

Pelo mundo fora

O Tempo cura tudo
O Tempo é um remédio
Eu sou um vírus

Todos os meus pensamentos
Tudo o que eu sou
São os meus pensamentos
Eu sou tudo
O que me fazem pensar

Tudo o que me fazem pensar
São os meus pensamentos
Todos os meus pensamentos
Tudo o que sou
São os meus pensamentos
Tudo o que não sou


v.o. B. Francis

quarta-feira, abril 16, 2008

O Homem, a Ladeira e o Calhau

No princípio era a Família; e o Homem era deus, padre e rei em sua casa, com a sua mulher e os seus filhos. E o Homem era feliz, sem dar por tal.

E veio a Serpente, e disse: “Come da maça que nasce da árvore da Política, e serás forte entre os outros homens, e a tua família governará as outras famílias.”
E o Homem provou do fruto proibido, e logo entrou em luta com o próximo; e Caím, filho do Homem, foi o pai da guerra civil.
E o Homem não foi feliz.

E veio o Padre, e disse: “O teu mal é o Pecado. Sustenta-me, e eu pedirei dia e noite o teu perdão a deus, e serás feliz.”
E o Padre recebeu a côngrua, levantou o templo e rezou dia e noite; mas o Homem trabalhou, jejuou, suou na fogueira, e não foi feliz.

E veio o Rei, e disse: “O teu mal é a Desordem e a Guerra. Sustenta-me, e eu arrumarei os teus negócios, e vencerei em batalha os teus inimigos, e serás feliz.”
E o Rei cobrou o imposto e montou no cavalo, combateu, conquistou; mas o Homem continuou a trabalhar, a jejuar e a suar; e estropiou-se nas guerras, e bailou nas forcas, e não foi feliz.

E veio o Republicano, e disse: “O teu mal é Deus, e o Padre e o Rei. Sustenta-me, e eu matarei o Rei, expulsarei o Padre, e porei a Razão no altar, e serás feliz.”
E o Republicano embolsou o subsídio, e andou na carruagem, e discursou no Senado e na Praça; mas o homem suou, trabalhou, jejuou na prisão, debruçou-se na guilhotina, e não foi feliz.

E então veio o Socialista, e disse: “O teu mal é o Dinheiro. Sustenta-me, e eu libertarei a Terra e a Fábrica, e adoçarei o trabalho pela Lei.”
E o Socialista recebeu a quota, legislou, expropriou, organizou, regulamentou, inspeccionou; mas o Homem continuou a trabalhar, e jejuou nas folgas, e do suor do seu rosto alimentou os preguiçosos e os inúteis, e não foi feliz.

E veio o Anarquista, e disse: “O teu mal é a Lei: sustenta-me e eu rasgarei a Lei. O teu mal é a Vida: não nasças, e serás feliz”
E o Anarquista almoçou, jantou e ceou no Botequim e voou no aeroplano, e lançou a destruição sobre as cidades; mas o Homem continuou a obedecer à Lei, porque a Lei era a força; e o Homem nasceu, porque a Vida era a força; e o homem quebrou os braços e as pernas, porque a Dinamite era a força. E o Homem não foi feliz.

E veio a morte, e disse: “Vem comigo, descansa em mim; sustenta com o que resta de ti os vermes da Terra, e serás feliz.”
E quando o Homem ia, finalmente, ser feliz, e sentir-se feliz, já o haviam devorado os Vermes da Terra…
…E o Homem foi outra vez feliz, sem dar por tal.

Agosto de 1912.

In: O HOMEM, A LADEIRA E O CALHAU (Breviário de desencanto político) – Agostinho de Campos – Aillaud e Bertrand, 1924.

sábado, abril 05, 2008

Assentar a Última Travessa

(No início do século XIX, vários grupos de trabalhadores, sem treino nem aptidões, construíram o sistema ferroviário da Inglaterra.
Só em vidas humanas o custo foi muito alto…)


Deixando a minha família para trás
Sem saber o que me esperava adiante
A acenar adeus, enquanto as lágrimas inundavam-me
Relembrando uma felicidade já distante

Olhei para o céu, ofereci a minha oração
Pedi – Lhe forças e orientação
Mas as simples crenças dum simples penitente
Descansam nas Suas mãos, e na minha mente

Eu dei tudo o que eles queriam
Mas mesmo assim eles queriam mais
Nós suámos e laborámos
Bons homens perderam a vida
Não acho que eles soubessem para quê
Vendi-lhes o meu coração
Vendi-lhes a minha alma
Dei tudo o que tinha na mão
Ah... mas eles não podiam vergar o meu espírito
A minha dignidade contra-atacou
Contra-ataca…

Trabalhávamos em equipa, como se estivéssemos em guerra
Os mais jovens puxavam os vagões
Nós cavávamos o túnel, revolviamos a terra
Foi quando aconteceu...

Ninguém sabia como surgiram as fissuras
Mas estas desapareceram quando tudo desabou
Numa chuva de pedras duras

O fumo dissipou, a poeira assentou
Ninguém sabia quantos tinham perecido
À minha volta via homens próximos da morte
“Disseram que era seguro, mentirosos…”
Podia escutar os choros, podia cheirar o pavor
Mas esse seria o meu dia de sorte
E depois ocorreu-me que um coração puro
Parecia ser difícil encontrar

Trabalhámos, como trabalhámos...
Vergámos a mola pelo pagamento
Debaixo da neve, chuva
A lutar contra o vento

A rebentar e a perfurar o mundo de Deus
O suor ardia nos olhos, a vida teria que melhorar
Ah mas eu consigo ouvir as minhas crianças a chorar
Consigo ver as lágrimas no seu olhar
Memórias daqueles que deixei para trás
Continuam a ecoar nos meus ouvidos
Será que voltarei um dia...
Será que verei as suas caras uma vez mais
Nunca esquecerei aquela noite
Em que eles se despediam dos seus pais

Viemos do norte
E viemos do sul
Com picaretas e martelos
Uma nova raça
Mostrou coragem ao enfrentar o destino
Eles nunca verão ninguém como nós

A assentar a última travessa
A erguer e a estabilizar os carris
Com mãos encardidas
O sol a torrar as tuas costas

Seguimos o trilho, dormimos sob as estrelas
Escavando às escuras, convivendo com o perigo
Sem mostrar medo do que poderia aparecer
Eles nunca verão ninguém como nós

v.o. P.Collins

quinta-feira, março 27, 2008

Telemóvel

Sem querer estar aqui com muita treta sobre este assunto, já que a cobertura mediática encarrega-se disso, gostava de enviar uma mensagem de apoio à aluna demoníaca que representa esta geração maléfica que invadiu as nossas escolas. Para quem, como eu, vê telejornais durante uma média de 5mn por dia, é assim que parece. Mas exceder esse tempo dá-me náuseas.

Caramba, será que ninguém andou na escola? Quando eu estava no 9º ano, o meu colega de carteira, o M., escrevinhou num papel, em plena aula de Matemática, o seguinte: "sexo, violência, setôra à presidência!" A referida professora era septuagenária, mas boa observadora, qualidade que lhe permitiu interceptar o bilhete num dos momentos em que andava a rodar pelos alunos. Mas antes que ela o pudesse ler, o M., aluno e colega dos mais respeitadores e simpáticos que alguma vez conheci, mas também brincalhão, salta da cadeira e antecipa-se à prof., que tenta tirar-lhe o papel das mãos. Ambos insistem e, por alguns segundos, foi exactamente a mesma história do telemóvel. Mas este episódio ficará gravado só na nossa memória.

Tudo bem, esta "luta pela posse do telemóvel" foi bastante prolongada e, realmente, dá que pensar. A aluna parecia desesperada e histérica. Já o Almeida Garrett dizia que as mulheres são o público alvo por excelência, porque emocionam-se com facilidade e, no âmbito do romantismo, a histeria e a loucura andam por perto. Os colegas comportaram-se como se aquilo fosse puro entretenimento, o que é normal (convém lembrar que foi desta forma que as pessoas em casa assistiram a isto). Nestas idades parece que somos um pouco como os Hobbitts, apenas vivemos para os pequenos prazeres. Resta a professora. Já olharam para ela? Parece o "exterminador". Fazendo um paralelo com a minha prof. de Matemática, algumas destas pessoas que resolvem ou são encaminhadas para dar aulas, julgam que se vão tornar chefes de secção de uma qualquer fábrica de conservas, onde os alunos chegam e saem a horas definidas, cumprem uma série de procedimentos mais ou menos rígidos, são obrigados a prestar serviço e a responder a uma figura autoritária que tem o dever de controlar os seus desempenhos e, por fim, avaliá-los. O Alvin Toffler já anda a dizer isto desde os anos sessenta. Ele atribui este sistema ao surgimento da Rev. Industrial. Portanto, o essencial, visto de uma perspectiva económica e política, não é ensinar nem abrir horizontes. Isso é pra quem tem dinheiro, motivações e inteligência. O resto da populaça tem que preencher os buracos e os estratos mais baixos da sociedade, por isso toca a meter tudo lá pra dentro (da escola) e esperar que aquela massa dê tijolos que possam servir para engrandecer a "parede" que rodeia a máquina produtiva do país.

Tendo a experiência de ter sido aluno, assim como professor, mesmo num curto espaço de tempo, reparei que não há muito interesse vindo do exterior sobre o que se passa dentro da escola e dentro das salas de aula. A minha prof. de Matemática e a prof. das filmagens são herdeiras das décadas em que Portugal esteve fechado para o mundo. Antigamente o problema ficava resolvido com um par de estalos, mas agora não se pode bater nas crianças porque elas têm direitos, nem se pode abraçá-las porque é pedofilia. Condeno a violência com que alguns pais se dirigem à escola para defender os filhos, mas tem que haver, de alguma forma, uma intervenção do resto dos agentes da comunidade. Lembro-me que assisti a uma reunião de turma, na qual estavam 10 professores e uma representante dos pais. A senhora ficou com a batata quente de apresentar algumas queixas de alunos relativamente ao comportamento de alguns profs. lá presentes. Nem preciso de dizer que ela foi entregue à bicharada, nenhum professor admitiu qualquer tipo de crítica e houve sempre uma atitude de confronto para com a senhora. Ninguém enaltece a coragem destas mães e pais que tentam compreender melhor como funciona o mundo onde os filhos vivem. A sua presença era desconfortável para os restantes elementos lá presentes e eu senti-me envergonhado perante a senhora.

Em "O admirável mundo novo" Huxley tenta, de uma forma literária, fantasiosa, tacteante e, por fim, utópica(?), descrever um futuro verosímil(?) no qual a nossa sociedade e humanidade seriam criadas e reguladas num laboratório. Ainda nas primeiras páginas, o autor escreve, a propósito de problemas na produção dos Epsilon, por sinal, a espécie humana de menor valor: "…Mas apesar dos Epsilons serem psicologicamente maduros aos 10 anos, o seu corpo só está apto para trabalhar aos 18. Serão longos anos de imaturidade supérflua e desperdiçada…" O pior é que, na sociedade actual, esta "teenage wasteland" prolonga-se pela idade adulta, por causa do desemprego. Huxley escreveria anos mais tarde, em "Brave New World Revisited", que achava que as suas teorias se estavam a confirmar mais rápido do que havia imaginado. Mas nessa altura ele também já estava a dar-lhe forte no LSD e na mescalina.

Mesmo quando estou bem disposto, é-me difícil encarar este assunto de forma optimista. No entanto, a pergunta que se faz é legítima: Onde está o espaço e tempo para se ser criança? E não falo apenas da escola. Muitos de vós poderão ter tido uma vivência familiar imaculada, mas nem toda a gente tem essa sorte. Alguns alunos sentiram-se à vontade para me confidenciar episódios do dia-a-dia familiar. No entanto, as suas atitudes na escola caracterizam-se pela ambiguidade: ora são os mais responsáveis e trabalhadores ora são completamente desinteressados e desordeiros.

Reitero a minha posição inicial. A miúda agiu mal, desde o uso do tlm na aula até à atitude de confronto, mas outros nem dariam a hipótese de a prof. lhes tirar o telemóvel. Se a sociedade de consumo dita que os telemóveis é que são fixes, então porque é que as mentes mais susceptíveis de cair na conversa é que deverão dar o exemplo? E se ela estivesse a brincar com o lápis ou o caderno, a professora também ia lá tirá-los? E, já agora, que resistentes mentes humanas é que aguentam passar 90 minutos a ouvir uma professora antiquada, monocórdica e mal disposta a falar sobre, por exemplo, as ideologias flutuantes de Camilo Castelo Branco. Em que ano estamos? Os alunos simplesmente não querem saber destas coisas, o mundo evolui e eles procuram interesses noutras áreas. E depois, para ensinar e incutir interesse em literatura chata é preciso tempo e estratégias, as quais o sistema escolar não tem condições para oferecer.

Escola, apressa-te ou perdes o comboio; Professores, a vida pessoal deve ficar lá fora. O exemplo deve vir dos mais experientes, e até os alunos mais ameaçadores podem ser conquistados. E quanto a manifestações, é bonito exercer esse direito, mas…vou convocar as palavras do R.A. Pereira, a propósito dos efeitos dos buzinões na ponte 25 de Abril, qualquer coisa como: “não creio que este barulho ensurdecedor vá mudar alguma coisa nesta lei. Carros a buzinar não são incomodativos para o ministro. A não ser que um desses carros vá a toda a velocidade direitinho ao dele…“ ; Adultos, se querem ou têm mesmo que ter filhos, ao menos tentem acompanhá-los e não os deixem à mercê destas instituições subservientes à máquina estatal e económica. Vocês pensam que eles vão fazer o trabalho por vós, mas quando derem por ela, os vossos filhos são filhos da Rhianna e do Justin Timberlake. Ou do Charles Manson. Pelo menos assim poderão ter uma palavra a dizer sobre a forma como são regidas as suas vidas. Eles têm voz e devem ser mais responsabilizados e ouvidos, não só quando fazem asneira, mas também na construção da sua identidade individual e social. Eles devem sentir o peso da responsabilidade, devem sentir que as suas opiniões são levadas em conta e que a escola não é um mero local de trabalho e obrigações. Porque não tentar uma abordagem à Summerhill, onde a recompensa (avaliação) dada a cada um é proporcional o que cada um faz num cenário escolar diversificado, isto para além da recompensa implícita no processo de viver e aprender.

Afinal há aqui muita treta, mas muita mais fica por dizer.

pedro

segunda-feira, março 24, 2008

O FIM


IV

Depois de La Guardia, esperava-nos a abertura de Paredes de Coura... Por isso era só rumar um pouco para sul. Sudeste, mais exactamente. E a abertura de Paredes de Coura não se refere apenas ao festival, porque disso vimos pouco. Refere-se também a um buraquinho, uma estreita passagem de terra e silvas por onde nos esgueirámos para encontrar um local colonizável. Estávamos no final de mais uma etapa de passeio automóvel livre de vómitos. Como íamos no quarto dia de estrada, estávamos um pouco cansados (ao quarto dia?!), mas enquanto as provisões não acabassem, nada havia a temer. No entanto, nessa manhã em que deixámos Caminha para só pararmos em Paredes, sofremos as primeiras baixas - as lágrimas e os gritos de desespero não podiam expressar com justeza o peso da componente trágica presente numa simples despedida. Para a Irena, era um adeus. Para o Tomás, um até já. Toda esta comoção galopante só poderia cessar com algo inesperado, como, por exemplo, encontrar alguém que sabíamos ser de Caminha, mas jamais sonhávamos encontrar em Caminha; ou ainda esse alguém ser tão alto e ter Baixinho no sobrenome. Estas hipóteses passaram a factos e, por breves momentos, deu para revisitar a figura do Manel, ocupante de um quarto remoto na remota residência de St. Tecla.

Devemos ter sido dos primeiros a chegar a Paredes de Coura. Penso mesmo que fomos os quintos. Como não tínhamos muito dinheiro, ficámos numa clareira ao lado do cemitério, a alguns metros do recinto de concertos. Novamente o velho jogo da espia e da pedra, dos sacos e das varas, do “não é aí, é aqui”, até que…ela apareceu. O cigarro ao canto da boca, o olhar semi-cerrado, mas de alcance ilimitado e a elegância do seu pairar por entre o matagal formavam uma silhueta cujo súbito surgimento nos gelou até à medula. O horizonte sedento sorvia o sol, e, por entre a bruma que se ia adensando, algo na sua postura deixava transparecer as suas intenções, as quais foram rapidamente expostas assim que ela disse: olá a todos! Era a Sónia, conhecida do Filipe. Ela ia conversando connosco, mantendo a mochila nas costas, por isso pensávamos que não iria lá ficar. Só depois percebi porque não tinha pressa para montar a sua alegre casinha, ao vê-la abrir a mochila, atirá-la para o solo e “puff!”, a tenda estava pronta. Que lufada de ar fresco! Há que notar que tínhamos perdido a Irena e o Tomás, provavelmente a componente que ainda conferia alguma classe ao nosso grupo. Sem este casal passámos a ser uma família disfuncional de cinco morcões mal cheirosos e uma mãe solteria com o filho. De certa forma, a Sónia veio, por breves momentos, revitalizar o que de decente havia ainda em nós.

Chegou a hora do Pedrito comer. Não sei porquê, tendo em conta o que já havia testemunhado, ofereci-me para acompanhar a Ana ao centro da vila a fim de encontrar um sítio que servisse sopa. Talvez estivesse a antecipar um novo reencontro, desta vez com alguém com quem convivi bastante. Após termos pedido a sopa, fomos para a esplanada do café, que estava cheia de gente. O miúdo comeu em relativo sossego, o que permitiu distrair os olhos e as mãos por uns instantes, o suficiente para me aperceber que estava lá alguém que falava um inglês do Dakota do Norte. Fargo!, pensei eu, do alto da minhas limitações. Aqueles “ya”, consubstanciados com interessantes conteúdos que eu não poderia deixar de escutar, eram dirigidos a um rapaz que eu bem conhecia. Era o Luís Ferrão.Há semanas disseram-me que casou, vive e trabalha nos E.U.A. A última vez que falei com ele foi precisamente neste encontro e, a dada altura, naturalmente, perguntei-lhe: então qual é a história com a Annie? O Luís sempre foi um tipo bastante sóbrio e comedido, e foi desta forma que me respondeu: “estamos a pensar em casar. Gosto bastante dela”. Mai nada! Gostei muito de o rever, ambos fomos agradavelmente surpreendidos. Devido às presenças da Annie e da Ana, não falámos sobre o passado. Realmente, esse já lá vai…Mas as horas que se sucederam deram para ver que mantém a mesma lucidez e a mesma sensatez de sempre.
Assim que o Pedrito acabou de limpar os beiços, convidámos o casal luso-americano, ainda a dar os primeiros passos de uma existência conjunta, para iniciar a noite na nossa companhia, por isso levámo-los até às nossas instalações, onde desfrutaram da nossa hospitalidade. Mais um jantar de arroz, alguns fait divers obrigatórios, um aperto aqui, um aperto ali…Quando a escuridão tinha já algumas horas, deixaram-nos. Por esta altura o pessoal da irmandade resolveu ir a algum lado. É que nessa noite, a noite zero do festival, não se cobrava a entrada no recinto, o qual estava já com bastante gente, embora não houvesse concertos. Lá descemos a íngreme estradita até às barraquinhas de bebidas, musica e misturas de sensações.

Hoje, o Pedro tem quase 4 anos. O Valter visitou a Ana há pouco e por pouco tempo e tentou, de alguma forma, captar a fase evolucionária na qual se encontraria o miúdo. Por muita informação que uma mãe cada vez mais à vontade nesse papel possa transmitir via telemóvel ou carta, é sempre interessante vermos como está o rapaz que há ano e meio decidiu abandonar, por momentos, quem o acompanhava, a fim de subir ao palco e assumir as funções de entertainer. Escusado será dizer que as suas danças e discurso monossilábico foram um êxito tremendo junto de toda a gente que ali estava, testemunhas do surgimento de um talento de caracóis à Marco Paulo. Para nós, sempre a ansiar estes manjares artísticos, inolvidável. Para ele…ah..nem tanto: passada meia hora tava a dormir e julgo que nunca mais falou sobre este assunto. Também não insisti porque, apesar do génio, ele é bastante reservado e preza muito a sua privacidade, excepto quando tá a comer. O que é que ele irá fazer a seguir…? Saudades do puto… Eu e toda a gente que não foi no carro do tio Lipe. Bom, mas o Valter é que o viu por isso ele ou a Ana que contem.

Não havia concertos, o que permitiu o stand up de há pouco, dava para circular pelos relvados, que ficam particularmente bonitos à noite, mas sem ser às escuras. Entre as barracas, encontro as primeiras caras familiares, o Jõao, Cachila, Zé Tiago e Pedro. Nessa altura ainda nos víamos em Espinho à noite com uma espaçada regularidade. Também com eles o passeio é garantido por isso não houve surpresa, tirando o tamanho das canecas por onde bebiam. Ultimamente temos jogado futebol se salão, até nos dias coincidentes com os jogos do Porto na Champions (entretanto foi-se - O adversário não devia poder jogar com dois guarda redes), o que mostra bem a vontade de toda uma geração de espinhenses empenhada em combater a silhueta parideira.
Voltou quase tudo pra cima, eu e o Filipe ficámos mais um pouco, no meio da refega de dança e saia hippie. Quando se está neste tipo de ambiente, semelhante ao de um carrossel em perpétuo movimento rodopiante, onde o som repetitivo da música marca o compasso das sensações visuais desafiadas pelo o psicadelismo das luzes e das cores que pintam as pessoas que por ali saltitam, não há muito que lembrar. O tempo pára e só começa quando quisermos. Não conversamos com ninguém, a não ser a gritar. Não ouvimos ninguém, nem toda a gente tem gargantas à Babes in Toyland. As escassas tentativas para tal poderão levar ao insucesso da comunicação, interpretações dúbias e a juízos mal fundamentados e injustos. Enfim, a base da grande parte dos –ismos e das fobias que nos afectam. Não sei, talvez isto ande nos arredores da experiência interna vivida pelo Lipe nessa noite. Estávamos sem isqueiros, por isso ele afasta-se de mim por momentos para pedir lumes a duas moças que estavam por perto. Trinta segundos depois volta, com o cigarro por acender, e a reclamar que elas o estavam a gozar, já que alegaram não compreender o que ele lhes dizia, nem os gestos…Bom, foi estranho…Na altura não liguei muito ao caso, mas reconheço que isto pode potenciar futuros problemas em agir naturalmente nestas situações.

Daqui a momentos, aterrar na cama. Quando vocês detectam um bicho, aranha, mosquito, etc., o que fazem? Vão dormir em sossego ou tentam matá-lo? Actualmente, embora de forma menos frenética, ainda enveredo pela segunda opção. L. Luke foi desafiado para um duelo com os quatro Dalton, um de cada vez. Claro que ele não iria verter uma gota de suor a lutar, por isso encontrou sempre algum estratagema para vencê-los sem esforço. O primeiro seria Avarell, e L. Luke, na noite anterior ao combate, enfiou um mosquito pela fechadura do quarto onde o Dalton pernoitava. O pobre homem passou a noite inteira a tentar matar o mosquito, o que daí resultou chegar ao duelo, na manhã seguinte, completamente extenuado. O gajo que tem a sombra atrasada derrubou-o com um dedo. O Avarell era o Dalton mais estúpido, e os outros não são muito mais espertos. Mesmo tendo em conta os efeitos que umas picadelas de mosquito acarretam, não são poucas as vezes em que dou por mim a pensar no que de errado se passa comigo, ao ver-me em cima da cama ou de uma cadeira com um chinelo na mão direita e uma espátula na esquerda (esta da espátula é a brincar, se bem que, tendo sonambulismo, tudo pode acontecer) a tentar detectar algum insecto de espírito aventureiro. E depois chego à conclusão de que o que preciso é de passar uns dias ao relento, como aqui, em que não existiam paredes, mas sim restos de mato, silvas, ramos, folhas e alguns insectos mortos que ajudavam a forrar os sacos-cama. Ahh…, boa vida…. Pensávamos apenas em onde dormir, na comida; lidar com gente com a qual nunca tínhamos contactado, nem voltaremos a contactar, parece atrair um lado generoso na nossa forma de ser, que noutras circunstâncias teima em permanecer anónimo. Mas como éramos um grupo isto só aconteceu nos acampamentos e noutros locais em que “éramos atendidos”. Mostrámo-nos bastante mais receptivos. Era fixe haver aulas assim – num transporte colectivo, a turma a percorrer 20 km por dia, cada paragem uma aula, leccionada por alguém de cada localidade. Se o edifício escola é demasiado claustrofóbico, os alunos passam lá demasiado tempo…feito! Mas depois ensinar matemática ou gramática ia ser impossível. A comunicação oral cada vez troça mais das convenções gramaticais, e a matemática simplesmente teria menos interesse, é uma disciplina que tem que ser encarada com uma postura desafiadora e mais ansiosa, porque querem-se resultados na hora, ao contrário de outras experiências, nas quais os nossos impulsos só mais tarde serão satisfeitos. A vontade de comer decresce consideravelmente, já que não estamos a viver uma rotina. No entanto, devo reconhecer que fazer isto de carro fica bastante dispendioso, mesmo que se dividam os custos. Há que encontrar novas formas de passear…


O último dia na estrada.

Paredes de Coura estava mais solarenga do que nunca. A vontade de lá ficar era imensa, apesar da crescente entrada de novas pessoas, que iriam tornar o recinto intransitável. No entanto, à tarde, no palco ainda virgem em concertos, houve lugar para a leitura de poesia e textos de carácter intervencionista. A dada altura aquilo já cansava, porque uma voz ao microfone torna-se maçuda, faz lembrar as instruções ouvidas através dos altifalantes, nos campos de concentração. Mas um deles apanhou-me de surpresa, porque, na altura, eu pensava que as pessoas liam coisas escritas por si, como num concurso que visa estimular a nossa criatividade. No entanto, este texto, em português, foi lido por um rapaz de trinta e poucos anos, óculos e barba farfalhuda. Pode dizer-se que representava a primeira pinga de Avante que está sempre patente nestes festivais. Ainda para mais, escolheu, como texto para ler, o Masters of War do Bob Dylan. Re-baptizado “Senhores da Guerra”, e embora não lhe perdoe o facto de ter omitido a verdadeira origem autoral do texto, não podia deixar de subscrever escolha:



Senhores da Guerra

Venham senhores da guerra
Vocês que fabricam todas as armas
Vocês que fabricam os aviões da morte
Vocês que fabricam as grandes bombas
Vocês que se escondem atrás de paredes
Vocês que se escondem atrás de secretárias
Apenas quero que saibam
Que consigo ver através das vossas máscaras

Vocês que nunca fizeram nada
Além de construir para destruir
Vocês abusam do meu mundo
Como se fosse o vosso brinquedo
Vocês colocam uma arma nas minhas mãos
E depois escondem-se da minha vista
E voltam-se e correm para longe
Quando as balas voam com rapidez

Como um Judas que chega a velho
Vocês mentem e enganam
Uma guerra mundial pode ser vencida
Querem vocês fazer-me acreditar
Mas eu vejo através dos vossos olhos
E vejo através do vosso cérebro
Tal como vejo através da água
Que escorre pela minha testa

Vocês apetrecham os gatilhos
Para outros dispararem
Depois relaxam e observam
Enquanto o número de mortos vai subindo
Vocês escondem-se nas vossas mansões
Enquanto o sangue de jovens
Escorre pelos seus corpos
E é enterrado na lama

Vocês lançaram o maior medo
Que poderíamos temer
O medo de trazer crianças
Para este mundo
Por ameaçarem o meu bebé
Sem nome e por nascer
Vocês nem sequer são dignos
Do sangue que vos corre nas veias

Mas o que é que eu sei
Para falar desta forma
Vocês podem dizer que eu sou jovem
Podem dizer que eu não tenho um curso
Mas há uma coisa que eu sei
Apesar de ser mais novo do que vós:
Nem mesmo Jesus
Perdoaria o que vocês fazem

Deixem-me perguntar-vos uma coisa
O vosso dinheiro é assim tão bom?
Será que vos pode comprar o perdão
Pensam que sim?
Eu penso que vocês vão descobrir
Quando a morte vier cobrar a sua dívida
Que todo o dinheiro que fizeram
Nunca poderá restituir a vossa alma

E eu espero que vocês morram
E que a vossa morte chegue cedo
Vou seguir o vosso caixão
Num pálido final de tarde
E vou ver-vos a descer à cova
Onde vão dormir o sono eterno
E vou ficar junto ao vosso túmulo
Até ter a certeza que vocês estão mortos.


v.o. Bob Dylan


Hora de arrumar tralha. Ainda tivemos um encontro imediato com o proprietário do terreno onde ficámos. Parece que não há um pedaço de terra que não pertença a alguém. Mas o homem foi bastante porreiro, julgo que não pretendia fazer dinheiro aproveitando-se do festival, senão tinha dado um jeito naquele matagal.
O Domingos está na Alemanha. Uma alma vadia como aquela, o mais provável é aparecer por aí para fazer escala e voltar a desaparecer.A Ana, sempre que pode, agarra no puto e vem até ao Porto, assim como o Filipe. Ficam em casa do Valter, homem irrequieto e com quem há sempre alguma coisa para fazer
Assim que saímos de Paredes, já nos carros, começa a chover. A chuva estava destinada a acompanhar o nosso estado de espírito durante a assimilação do facto de o fim estar próximo. Fizemos a viagem mais calados do que o habitual. Setembro estava à porta e havia que regressar ao trabalho e às rotinas sociais e familiares. Hora de hibernar, em breve voltaríamos a pisar verdes campos debaixo de um sol radioso.


FIM (ou talvez não…)

quinta-feira, março 13, 2008

Carta de um comatoso (Rose, Slash)

Ei encontro-me em estado de coma
e acho que não quero…
voltar para o mundo outra vez

até estou a gostar deste estado de coma
porque ninguém me vai obrigar a…
voltar para o mundo outra vez

agora sinto que estou a flutuar
não sinto qualquer pressão
e gosto de assim estar
mas do meu corpo vem a reacção
tentando fazer com que eu volte…
para o mundo outra vez

em profunda suspensão
na escuridão dum mar vasto
espero pela iluminação
tenho os ossos pendurados no mastro
bem, parti num barco à vela

eu podia viver agradavelmente
enquanto amigos me ligavam com regularidade
mas para com eles fui indiferente
quando tudo o que precisava era claridade e…
alguém que me dissesse o que raio se está a passar!
foda-se!

cada vez mais e mais distante
é espantoso quanto tempo ficamos
num mundo criado pela nossa mente
num mundo que está cheio de merda.

por favor entende esta dor no meu peito
estou a fugir duma desilusão mortífera,
de todos os meus sonhos desfeitos
mas esta investida infrutífera
não consegue calar todos os meus gritos
e estou à espera na encruzilhada

à tua espera
à tua espera
onde estás…

(ninguém me vai incomodar
ninguém me vai foder o juízo
não consigo perceber o porquê de toda esta luta
mas é tão agradável aqui à beira-mar
gostava que pudesses ver isto
porque não há nada para ver
aqui estou em paz e estou feliz

nada a ver com o mundo onde vivia
onde nunca quis viver…)

Bum! Bum! (Choques eléctricos – Reanimação cárdio – pulmonar )

ya vive a tua vida como se fosse um coma
do qual não consegues acordar
diz-me lá porque o haveríamos de desejar
com todas essas razões é difícil acreditar

mas quem sou eu para te dizer
que vejo alguma razão pela qual devas permanecer
talvez todos estejamos melhor sem ti

tens um bilhete de ida
na viagem da tua vida
tens um bilhete de ida
para o... teu suicídio

tens um bilhete de ida
e não sais daí vivo

e toda esta convivência insensível
a qual te deixou ao frio e ao vento
não serve de grande consolo
quando te sentes gasto pelo tempo
mas se tens um “lar doce lar”
então há histórias pra contar
não precisas de as contar a um psicólogo
mais ninguém pode devolver a tua sanidade


tens a tua mente presa no prólogo
arriscaste a vida numa história sobre humanidade
mas ninguém fez a arma disparar
apenas encostaram-se a um canto
eles estarão lá à beira-mar
enquanto acenam adeus com desencanto
eles estarão a ligar de manhã
pendurados ao telefone noite e dia
estarão à espera duma resposta sã
quando tu sabes que a hora de atender é já tardia
e quando os sinos pararem de badalar
não foi por culpa de ninguém excepto a tua
houve sempre sinais subtis que decidiste ignorar
avisos veementes que mostraram a realidade nua
e tudo isso tu devias ter antecipado
mas foi-te concedida demasiada liberdade

por vezes ficamos tão cansados de esperar
por uma forma de passar o nosso tempo
e é tão fácil ser sociável
é tão fácil ser fixe
ya é fácil estar esfomeado
quando não tens nada a perder
e quem me dera poder ajudar-te
na busca do procuras encontrar
mas ainda estou aqui à espera
a visionar repetições da minha vida
quando atinges o ponto de ruptura
sabes que ainda vai demorar algum tempo
a sarar as memórias feridas
que outro homem iria precisar
apenas para sobreviver.

terça-feira, fevereiro 26, 2008

emmimmesmamento

Renascer

O mundo assim é
não há forma de saber

Onde colocar a tua fé
e como fazê-la crescer?

Vou renascer
queimando buracos negros
em remotas memórias

Vou renascer
transformar erros
em preciosidades

Assim é a passagem do tempo
demasiado rápida para captar

Por sinais engolida de repente
deixa-te assustar

Vou renascer
encontrar a minha direcção
magneticamente

Vou renascer
deixar o meu trunfo
no fundo da cova


Longas Noites

não tenho medo nem dor
porque quando estou só
estarei melhor
do que estava no dia anterior

a minha vida é um presente
vou estar por cá para crescer
quem eu era antigamente
não consigo reconhecer

longas noites deixam-me
sentir a cair
estou a cair

as luzes apagam-se
deixam-me sentir a cair
estou a cair

confortavelmente no chão

vou acolher esta alma
dentro de mim actualmente
tal como um novo amigo
que conhecerei eternamente

a minha vida é um presente
e tenho a vontade de mostrar
que estarei sempre melhor
melhor do que antigamente



Garantido

Viver ajoelhado não é viver livremente
erguendo uma caneca vazia peço silenciosamente
que todos os meus destinos aceitem aquele que sou eu
para eu poder respirar…

Círculos crescem e engolem as pessoas por inteiro
metade das suas vidas dizendo boa noite a esposas que nunca conhecerão
tenho uma mente cheia de questões e um professor na minha alma
e assim continua…

Não te aproximes ou terei de partir
a tomar conta do meu ser estão sítios que puxam como gravidade
se algum dia houvesse alguém para me manter em casa
serias tu…

Toda a gente que encontro comprou as suas celas
pensam em mim e na minha vagabundagem mas eu nunca sou aquilo que eles pensaram
tenho a minha indignação mas sou puro nos meus pensamentos
estou vivo…

O vento na minha face, sinto que faço parte de tudo
debaixo do meu ser está uma estrada que desapareceu
pela noite fora ouço as árvores a cantar com os mortos
num som longínquo…

Deixa comigo a forma como vou sobreviver
considera-me um satélite em permanente órbita
eu conhecia todas as regras mas as regras não me conheciam a mim
garantido

(E.Vedder "Into the Wild o.s.t.")

terça-feira, fevereiro 19, 2008

Sou o oceano (Young)

sou um acidente
conduzia a alta velocidade
mas como não consegui parar
o momento durou uma eternidade

as pessoas da minha idade…
não fazem as coisas que eu faço
vão passear pela cidade
enquanto eu fujo contigo
tenho alguns amigos
e tenho também os meus filhos
tenho o amor dela
e ela tem o meu

não te ouço
mas o que dizes é comovente
não te vejo
mas sei o que está à minha frente
agora flutuo
porque não estou preso ao chão
palavras que fui dizendo…
parecem não ter som

na vasta planície
vejo o ciclista na noite
vejo o camisola amarela
vejo os corajosos
debaixo da luz da lua
quem vai amá-los
quando eles matarem
quem vai ampará-los
quando eles tremerem

números telefónicos
num velho monitor
filas de amantes afónicos
estacionados eternamente num sonho
sirenes a gritar, pela baía a ecoar
para os velhos barcos
daquela cidade distante

Heróis sem abrigo
Caminham pelas ruas da sua cidade natal
Filas de zeros
Num campo que se torna fatal
Jogam basket
Jogam futebol sob luzes
Jogam cartas
E são vistos todas as noites

É preciso distracção
É preciso romance e luz de velas
É preciso violência gratuita
É preciso entretenimento esta noite
É preciso um prova
Quer-se um testemunho de
Uma testemunha especialista nos
Devastadores crimes passionais

Estava demasiado cansado
Para ver as notícias ao chegar a casa
Corri as cortinas
Aterrei na cama sozinho
Comecei a sonhar
Vi o ciclista uma vez mais
Na entrada da casa
Onde ela estava a olhar por ele

Eu não estou presente
Sou uma droga que te faz sonhar
Sou um meteoro
Sou uma flecha a voar
Em contra mão
A tentar furar por entre a multidão
Sou o oceano
Sou um gigante adormecido


Um Passo em Frente (Springsteen)

Acordei esta manhã, a casa estava fria
O aquecedor estava avariado.
Fui ao pátio buscar o jornal do dia,
Mas o jornaleiro estava atrasado.
Duras lições aprendemos diariamente,
Mas não aprendemos, somos…
Uma triste história certamente.

Um passarinho poisa na varanda da cozinha,
Mas não quer cantar.
No jardim uma menina dança sozinha,
Mas o sol não quer brilhar.
Estou só esta noite num hotel
E tudo em que penso é…
Sou a mesma velha história, no mesmo velho papel.

Todas as noites é a mesma discussão,
Quem não tem, quem tem razão.
Outra luta e o espírito desespera,
Outra batalha na nossa pequena guerra.
Quando olho para mim não consigo ver,
O homem que eu queria ser.
Algures no percurso desviei-me demais,
Apanhado…
A dar um passo em frente e dois atrás.

Uma mulher no balcão pede uma bebida,
Eu capto o sinal que ela me enviou.
Humm… não parece comprometida.
Eu, enfim, finjo que estou.
Esta noite sonhei que estavas nos meus braços,
A música era interminável,
Dançámos sob um céu que escurecia em tom lilás

Um passo em frente e dois atrás.






Lista de Desejos (Vedder)

Quem me dera ser uma bomba nuclear
Que por uma vez pudesse explodir.
Quem me dera ser um sacrifício
Mas que de alguma forma sobrevivesse.
Quem me dera ser o objecto de valor sentimental
Que tu tão bem guardas.
Na árvore de Natal, quem me dera ser…
A estrela que está no topo.

Quem me dera ser o tempo verbal “para sempre”,
Quem me dera ser a prova do crime
Quem me dera ser o ponto de partida
De 50.000 raios de luz
Lançados em direcção ao teu céu

Quem me dera ser um marinheiro com…
Alguém que esperasse por mim.
Quem me dera ser tão afortunado…
Tão afortunado quanto eu.
Quem me dera ser um mensageiro
E que todas as notícias fossem boas.
Quem me dera ser a lua cheia
A brilhar no teu lago favorito.

Quem me dera ser um ser humano
Com casa atrás do sol.
Quem me dera ser a lembrança
Que guardas no teu porta-chaves.

Quem me dera ser o travão
Que iria salvar a tua vida.
Quem me dera ser o verbo confiar
E nunca, nunca te deixar ficar mal.

Quem me dera ser uma canção a tocar na rádio,
Aquela que tu nunca irias mudar.
Quem me dera, quem me dera,
Eu acho que nunca vai acabar.




Dilúvio de Sol (Cornell)

Escuro como carvão, fino como a areia.
Sinto a tua cura e o teu contágio outra vez.
Ouço-te rir e a minha alma está segura…
Em campas esquecidas onde tu choras.

Sobe-me à espinha como uma trepadeira.
Pelos meus nervos e para os meus olhos.
Fere como a angústia ou…
Memórias de melhores dias passados.

Mas está tudo bem…
Quando és apanhado pela dor,
E sentes a chuva a cair.
Oh está tudo bem…
Quando encontras o teu caminho,
E depois vê-lo desaparecer.
Está tudo bem…
Apesar de o teu jardim ser cinzento,
Eu sei que toda a tua graça
Um dia irá florescer
Num doce dilúvio de sol.

Olhos como oceanos que se estendem até ao infinito.
Um trilho de penas para uma boa viagem.
Manhãs inquietas passam a dias…
E depois passam a noites inquietas.






A minha porta (Cornell, Tahyil)

Toma, se queres uma fatia,
Se queres um pedaço,
Se te sabe bem.

Quebra, se gostas do som,
Se te anima,
Se te deixa em baixo.

Partilha, se isso te faz dormir à noite,
Se te liberta.
Se te ajuda a respirar.

Mas não venhas prá qui
Mijar na minha porta
Poupa-me, apenas deixa-me em paz

Chora, se queres chorar,
Se te ajuda ver,
Se lava os teus olhos.

Odeia, se queres odiar,
Se te mantém a salvo,
Se te torna corajoso.

Reza, se queres rezar,
Se gostas de te ajoelhar,
Se te deixas levar.

Mas não venhas prá qui
Mijar na minha porta
Poupa-me, apenas deixa-me em paz





O Meu Fado (Cornell)

O que quer que eu tenha temido,
Ganhou vida.
O que quer que eu tenha combatido,
Tornou-se a minha vida.
Logo quando cada dia
Parecia agraciar-me com um sorriso.
Os raios de sol desapareceram.
E agora cumpro pena.

Quem quer que eu tenha curado,
Agora contagiei.
Quem quer que eu tenha amparado,
Agora derrubei.
Sou uma alma em demanda de luz, dizem,
Mas não consigo ver à noite.
E apenas estou a fingir
Nas poucas vezes em que vou acertando.

Portanto o que tu querias ver bem feito,
Tornou-te cego.
E o que tu querias que fosse teu,
Tornou-se meu.
Então não tranques algo,
Que querias ver voar.
As mãos servem para cumprimentar,
E não para algemar.

Não me importo nada de mudar.




O Dia Em Que Eu Tentei Viver (Cornell)

Acordei como em qualquer outro dia,
Mas uma voz pairava na minha cabeça.
Dizia goza o momento, prime o gatilho,
E olha prás cabeças a rolar.

No dia em que eu tentei viver,
Roubei 80 cêntimos a um pedinte
E ofereci-os a um rico.
No dia em que eu tentei viver,
Coloquei o capuz na cabeça
E deixei os mártires partirem

E daí, um dia talvez o consiga,
O dia em que eu tentei viver!

As palavras que tu dizes,
Parecem nunca fazer jus ás que estão na tua cabeça.
As vidas que levamos,
Parecem nunca nos levar para além da morte.

No dia em que eu tentei viver
Chafurdei na lama e no sangue com…
Todos os outros porcos!

E aprendi que era um mentiroso,
Tal como tu…
Tal como tu…



Mentiroso (Rollins)

Pensas que vais viver a tua vida sozinho
Na escuridão…E em reclusão
Sim, eu sei…Andaste por aí
A tentar misturar-te com esses animais
O que te deixou cheio de humilhantes confusões
Por isso voltas a casa com o rabinho entre as pernas
E esperas por nada...
Mas a confinante solidão do teu quarto
Cospe-te de volta para as ruas
E agora estás desesperado
E a ressacar socialização
E depois…Conheces-me
E todo o teu mundo muda
Porque tudo o que eu digo
É tudo o que sempre quiseste ouvir
Por isso baixas as tuas defesas
…E os teus medos…E confias em mim
Completamente
Eu sou perfeito…Em todas as formas
Porque eu faço-te sentir tão forte e poderoso
Sentes-te tão afortunado…
Mas o teu ego ensombra a realidade
E tu nunca te incomodaste em saber porque é que
As coisas correm tão bem
Queres saber porquê?

Porque eu sou um mentiroso!
Sim sou um mentiroso!

Estarei escondido atrás dum sorriso
E dum olhar compreensivo
E vou falar-te coisas que já sabes
Para poderes dizer:
“Eu identifico-me tanto contigo!”
E durante o tempo em que precisas de mim
É apenas o tempo em que te estou a ferir
Eu chego a ti como uma aflição
Mas vou-te deixar como uma tentação
Nunca me esquecerás
Queres saber porquê?
Porque sou um mentiroso!
Sim um mentiroso!
Vou-te arrancar o cérebro!
Vou queimar a tua alma!
Vou-te moldar à minha imagem!
Porque sou um mentiroso