quinta-feira, março 27, 2008

Telemóvel

Sem querer estar aqui com muita treta sobre este assunto, já que a cobertura mediática encarrega-se disso, gostava de enviar uma mensagem de apoio à aluna demoníaca que representa esta geração maléfica que invadiu as nossas escolas. Para quem, como eu, vê telejornais durante uma média de 5mn por dia, é assim que parece. Mas exceder esse tempo dá-me náuseas.

Caramba, será que ninguém andou na escola? Quando eu estava no 9º ano, o meu colega de carteira, o M., escrevinhou num papel, em plena aula de Matemática, o seguinte: "sexo, violência, setôra à presidência!" A referida professora era septuagenária, mas boa observadora, qualidade que lhe permitiu interceptar o bilhete num dos momentos em que andava a rodar pelos alunos. Mas antes que ela o pudesse ler, o M., aluno e colega dos mais respeitadores e simpáticos que alguma vez conheci, mas também brincalhão, salta da cadeira e antecipa-se à prof., que tenta tirar-lhe o papel das mãos. Ambos insistem e, por alguns segundos, foi exactamente a mesma história do telemóvel. Mas este episódio ficará gravado só na nossa memória.

Tudo bem, esta "luta pela posse do telemóvel" foi bastante prolongada e, realmente, dá que pensar. A aluna parecia desesperada e histérica. Já o Almeida Garrett dizia que as mulheres são o público alvo por excelência, porque emocionam-se com facilidade e, no âmbito do romantismo, a histeria e a loucura andam por perto. Os colegas comportaram-se como se aquilo fosse puro entretenimento, o que é normal (convém lembrar que foi desta forma que as pessoas em casa assistiram a isto). Nestas idades parece que somos um pouco como os Hobbitts, apenas vivemos para os pequenos prazeres. Resta a professora. Já olharam para ela? Parece o "exterminador". Fazendo um paralelo com a minha prof. de Matemática, algumas destas pessoas que resolvem ou são encaminhadas para dar aulas, julgam que se vão tornar chefes de secção de uma qualquer fábrica de conservas, onde os alunos chegam e saem a horas definidas, cumprem uma série de procedimentos mais ou menos rígidos, são obrigados a prestar serviço e a responder a uma figura autoritária que tem o dever de controlar os seus desempenhos e, por fim, avaliá-los. O Alvin Toffler já anda a dizer isto desde os anos sessenta. Ele atribui este sistema ao surgimento da Rev. Industrial. Portanto, o essencial, visto de uma perspectiva económica e política, não é ensinar nem abrir horizontes. Isso é pra quem tem dinheiro, motivações e inteligência. O resto da populaça tem que preencher os buracos e os estratos mais baixos da sociedade, por isso toca a meter tudo lá pra dentro (da escola) e esperar que aquela massa dê tijolos que possam servir para engrandecer a "parede" que rodeia a máquina produtiva do país.

Tendo a experiência de ter sido aluno, assim como professor, mesmo num curto espaço de tempo, reparei que não há muito interesse vindo do exterior sobre o que se passa dentro da escola e dentro das salas de aula. A minha prof. de Matemática e a prof. das filmagens são herdeiras das décadas em que Portugal esteve fechado para o mundo. Antigamente o problema ficava resolvido com um par de estalos, mas agora não se pode bater nas crianças porque elas têm direitos, nem se pode abraçá-las porque é pedofilia. Condeno a violência com que alguns pais se dirigem à escola para defender os filhos, mas tem que haver, de alguma forma, uma intervenção do resto dos agentes da comunidade. Lembro-me que assisti a uma reunião de turma, na qual estavam 10 professores e uma representante dos pais. A senhora ficou com a batata quente de apresentar algumas queixas de alunos relativamente ao comportamento de alguns profs. lá presentes. Nem preciso de dizer que ela foi entregue à bicharada, nenhum professor admitiu qualquer tipo de crítica e houve sempre uma atitude de confronto para com a senhora. Ninguém enaltece a coragem destas mães e pais que tentam compreender melhor como funciona o mundo onde os filhos vivem. A sua presença era desconfortável para os restantes elementos lá presentes e eu senti-me envergonhado perante a senhora.

Em "O admirável mundo novo" Huxley tenta, de uma forma literária, fantasiosa, tacteante e, por fim, utópica(?), descrever um futuro verosímil(?) no qual a nossa sociedade e humanidade seriam criadas e reguladas num laboratório. Ainda nas primeiras páginas, o autor escreve, a propósito de problemas na produção dos Epsilon, por sinal, a espécie humana de menor valor: "…Mas apesar dos Epsilons serem psicologicamente maduros aos 10 anos, o seu corpo só está apto para trabalhar aos 18. Serão longos anos de imaturidade supérflua e desperdiçada…" O pior é que, na sociedade actual, esta "teenage wasteland" prolonga-se pela idade adulta, por causa do desemprego. Huxley escreveria anos mais tarde, em "Brave New World Revisited", que achava que as suas teorias se estavam a confirmar mais rápido do que havia imaginado. Mas nessa altura ele também já estava a dar-lhe forte no LSD e na mescalina.

Mesmo quando estou bem disposto, é-me difícil encarar este assunto de forma optimista. No entanto, a pergunta que se faz é legítima: Onde está o espaço e tempo para se ser criança? E não falo apenas da escola. Muitos de vós poderão ter tido uma vivência familiar imaculada, mas nem toda a gente tem essa sorte. Alguns alunos sentiram-se à vontade para me confidenciar episódios do dia-a-dia familiar. No entanto, as suas atitudes na escola caracterizam-se pela ambiguidade: ora são os mais responsáveis e trabalhadores ora são completamente desinteressados e desordeiros.

Reitero a minha posição inicial. A miúda agiu mal, desde o uso do tlm na aula até à atitude de confronto, mas outros nem dariam a hipótese de a prof. lhes tirar o telemóvel. Se a sociedade de consumo dita que os telemóveis é que são fixes, então porque é que as mentes mais susceptíveis de cair na conversa é que deverão dar o exemplo? E se ela estivesse a brincar com o lápis ou o caderno, a professora também ia lá tirá-los? E, já agora, que resistentes mentes humanas é que aguentam passar 90 minutos a ouvir uma professora antiquada, monocórdica e mal disposta a falar sobre, por exemplo, as ideologias flutuantes de Camilo Castelo Branco. Em que ano estamos? Os alunos simplesmente não querem saber destas coisas, o mundo evolui e eles procuram interesses noutras áreas. E depois, para ensinar e incutir interesse em literatura chata é preciso tempo e estratégias, as quais o sistema escolar não tem condições para oferecer.

Escola, apressa-te ou perdes o comboio; Professores, a vida pessoal deve ficar lá fora. O exemplo deve vir dos mais experientes, e até os alunos mais ameaçadores podem ser conquistados. E quanto a manifestações, é bonito exercer esse direito, mas…vou convocar as palavras do R.A. Pereira, a propósito dos efeitos dos buzinões na ponte 25 de Abril, qualquer coisa como: “não creio que este barulho ensurdecedor vá mudar alguma coisa nesta lei. Carros a buzinar não são incomodativos para o ministro. A não ser que um desses carros vá a toda a velocidade direitinho ao dele…“ ; Adultos, se querem ou têm mesmo que ter filhos, ao menos tentem acompanhá-los e não os deixem à mercê destas instituições subservientes à máquina estatal e económica. Vocês pensam que eles vão fazer o trabalho por vós, mas quando derem por ela, os vossos filhos são filhos da Rhianna e do Justin Timberlake. Ou do Charles Manson. Pelo menos assim poderão ter uma palavra a dizer sobre a forma como são regidas as suas vidas. Eles têm voz e devem ser mais responsabilizados e ouvidos, não só quando fazem asneira, mas também na construção da sua identidade individual e social. Eles devem sentir o peso da responsabilidade, devem sentir que as suas opiniões são levadas em conta e que a escola não é um mero local de trabalho e obrigações. Porque não tentar uma abordagem à Summerhill, onde a recompensa (avaliação) dada a cada um é proporcional o que cada um faz num cenário escolar diversificado, isto para além da recompensa implícita no processo de viver e aprender.

Afinal há aqui muita treta, mas muita mais fica por dizer.

pedro

segunda-feira, março 24, 2008

O FIM


IV

Depois de La Guardia, esperava-nos a abertura de Paredes de Coura... Por isso era só rumar um pouco para sul. Sudeste, mais exactamente. E a abertura de Paredes de Coura não se refere apenas ao festival, porque disso vimos pouco. Refere-se também a um buraquinho, uma estreita passagem de terra e silvas por onde nos esgueirámos para encontrar um local colonizável. Estávamos no final de mais uma etapa de passeio automóvel livre de vómitos. Como íamos no quarto dia de estrada, estávamos um pouco cansados (ao quarto dia?!), mas enquanto as provisões não acabassem, nada havia a temer. No entanto, nessa manhã em que deixámos Caminha para só pararmos em Paredes, sofremos as primeiras baixas - as lágrimas e os gritos de desespero não podiam expressar com justeza o peso da componente trágica presente numa simples despedida. Para a Irena, era um adeus. Para o Tomás, um até já. Toda esta comoção galopante só poderia cessar com algo inesperado, como, por exemplo, encontrar alguém que sabíamos ser de Caminha, mas jamais sonhávamos encontrar em Caminha; ou ainda esse alguém ser tão alto e ter Baixinho no sobrenome. Estas hipóteses passaram a factos e, por breves momentos, deu para revisitar a figura do Manel, ocupante de um quarto remoto na remota residência de St. Tecla.

Devemos ter sido dos primeiros a chegar a Paredes de Coura. Penso mesmo que fomos os quintos. Como não tínhamos muito dinheiro, ficámos numa clareira ao lado do cemitério, a alguns metros do recinto de concertos. Novamente o velho jogo da espia e da pedra, dos sacos e das varas, do “não é aí, é aqui”, até que…ela apareceu. O cigarro ao canto da boca, o olhar semi-cerrado, mas de alcance ilimitado e a elegância do seu pairar por entre o matagal formavam uma silhueta cujo súbito surgimento nos gelou até à medula. O horizonte sedento sorvia o sol, e, por entre a bruma que se ia adensando, algo na sua postura deixava transparecer as suas intenções, as quais foram rapidamente expostas assim que ela disse: olá a todos! Era a Sónia, conhecida do Filipe. Ela ia conversando connosco, mantendo a mochila nas costas, por isso pensávamos que não iria lá ficar. Só depois percebi porque não tinha pressa para montar a sua alegre casinha, ao vê-la abrir a mochila, atirá-la para o solo e “puff!”, a tenda estava pronta. Que lufada de ar fresco! Há que notar que tínhamos perdido a Irena e o Tomás, provavelmente a componente que ainda conferia alguma classe ao nosso grupo. Sem este casal passámos a ser uma família disfuncional de cinco morcões mal cheirosos e uma mãe solteria com o filho. De certa forma, a Sónia veio, por breves momentos, revitalizar o que de decente havia ainda em nós.

Chegou a hora do Pedrito comer. Não sei porquê, tendo em conta o que já havia testemunhado, ofereci-me para acompanhar a Ana ao centro da vila a fim de encontrar um sítio que servisse sopa. Talvez estivesse a antecipar um novo reencontro, desta vez com alguém com quem convivi bastante. Após termos pedido a sopa, fomos para a esplanada do café, que estava cheia de gente. O miúdo comeu em relativo sossego, o que permitiu distrair os olhos e as mãos por uns instantes, o suficiente para me aperceber que estava lá alguém que falava um inglês do Dakota do Norte. Fargo!, pensei eu, do alto da minhas limitações. Aqueles “ya”, consubstanciados com interessantes conteúdos que eu não poderia deixar de escutar, eram dirigidos a um rapaz que eu bem conhecia. Era o Luís Ferrão.Há semanas disseram-me que casou, vive e trabalha nos E.U.A. A última vez que falei com ele foi precisamente neste encontro e, a dada altura, naturalmente, perguntei-lhe: então qual é a história com a Annie? O Luís sempre foi um tipo bastante sóbrio e comedido, e foi desta forma que me respondeu: “estamos a pensar em casar. Gosto bastante dela”. Mai nada! Gostei muito de o rever, ambos fomos agradavelmente surpreendidos. Devido às presenças da Annie e da Ana, não falámos sobre o passado. Realmente, esse já lá vai…Mas as horas que se sucederam deram para ver que mantém a mesma lucidez e a mesma sensatez de sempre.
Assim que o Pedrito acabou de limpar os beiços, convidámos o casal luso-americano, ainda a dar os primeiros passos de uma existência conjunta, para iniciar a noite na nossa companhia, por isso levámo-los até às nossas instalações, onde desfrutaram da nossa hospitalidade. Mais um jantar de arroz, alguns fait divers obrigatórios, um aperto aqui, um aperto ali…Quando a escuridão tinha já algumas horas, deixaram-nos. Por esta altura o pessoal da irmandade resolveu ir a algum lado. É que nessa noite, a noite zero do festival, não se cobrava a entrada no recinto, o qual estava já com bastante gente, embora não houvesse concertos. Lá descemos a íngreme estradita até às barraquinhas de bebidas, musica e misturas de sensações.

Hoje, o Pedro tem quase 4 anos. O Valter visitou a Ana há pouco e por pouco tempo e tentou, de alguma forma, captar a fase evolucionária na qual se encontraria o miúdo. Por muita informação que uma mãe cada vez mais à vontade nesse papel possa transmitir via telemóvel ou carta, é sempre interessante vermos como está o rapaz que há ano e meio decidiu abandonar, por momentos, quem o acompanhava, a fim de subir ao palco e assumir as funções de entertainer. Escusado será dizer que as suas danças e discurso monossilábico foram um êxito tremendo junto de toda a gente que ali estava, testemunhas do surgimento de um talento de caracóis à Marco Paulo. Para nós, sempre a ansiar estes manjares artísticos, inolvidável. Para ele…ah..nem tanto: passada meia hora tava a dormir e julgo que nunca mais falou sobre este assunto. Também não insisti porque, apesar do génio, ele é bastante reservado e preza muito a sua privacidade, excepto quando tá a comer. O que é que ele irá fazer a seguir…? Saudades do puto… Eu e toda a gente que não foi no carro do tio Lipe. Bom, mas o Valter é que o viu por isso ele ou a Ana que contem.

Não havia concertos, o que permitiu o stand up de há pouco, dava para circular pelos relvados, que ficam particularmente bonitos à noite, mas sem ser às escuras. Entre as barracas, encontro as primeiras caras familiares, o Jõao, Cachila, Zé Tiago e Pedro. Nessa altura ainda nos víamos em Espinho à noite com uma espaçada regularidade. Também com eles o passeio é garantido por isso não houve surpresa, tirando o tamanho das canecas por onde bebiam. Ultimamente temos jogado futebol se salão, até nos dias coincidentes com os jogos do Porto na Champions (entretanto foi-se - O adversário não devia poder jogar com dois guarda redes), o que mostra bem a vontade de toda uma geração de espinhenses empenhada em combater a silhueta parideira.
Voltou quase tudo pra cima, eu e o Filipe ficámos mais um pouco, no meio da refega de dança e saia hippie. Quando se está neste tipo de ambiente, semelhante ao de um carrossel em perpétuo movimento rodopiante, onde o som repetitivo da música marca o compasso das sensações visuais desafiadas pelo o psicadelismo das luzes e das cores que pintam as pessoas que por ali saltitam, não há muito que lembrar. O tempo pára e só começa quando quisermos. Não conversamos com ninguém, a não ser a gritar. Não ouvimos ninguém, nem toda a gente tem gargantas à Babes in Toyland. As escassas tentativas para tal poderão levar ao insucesso da comunicação, interpretações dúbias e a juízos mal fundamentados e injustos. Enfim, a base da grande parte dos –ismos e das fobias que nos afectam. Não sei, talvez isto ande nos arredores da experiência interna vivida pelo Lipe nessa noite. Estávamos sem isqueiros, por isso ele afasta-se de mim por momentos para pedir lumes a duas moças que estavam por perto. Trinta segundos depois volta, com o cigarro por acender, e a reclamar que elas o estavam a gozar, já que alegaram não compreender o que ele lhes dizia, nem os gestos…Bom, foi estranho…Na altura não liguei muito ao caso, mas reconheço que isto pode potenciar futuros problemas em agir naturalmente nestas situações.

Daqui a momentos, aterrar na cama. Quando vocês detectam um bicho, aranha, mosquito, etc., o que fazem? Vão dormir em sossego ou tentam matá-lo? Actualmente, embora de forma menos frenética, ainda enveredo pela segunda opção. L. Luke foi desafiado para um duelo com os quatro Dalton, um de cada vez. Claro que ele não iria verter uma gota de suor a lutar, por isso encontrou sempre algum estratagema para vencê-los sem esforço. O primeiro seria Avarell, e L. Luke, na noite anterior ao combate, enfiou um mosquito pela fechadura do quarto onde o Dalton pernoitava. O pobre homem passou a noite inteira a tentar matar o mosquito, o que daí resultou chegar ao duelo, na manhã seguinte, completamente extenuado. O gajo que tem a sombra atrasada derrubou-o com um dedo. O Avarell era o Dalton mais estúpido, e os outros não são muito mais espertos. Mesmo tendo em conta os efeitos que umas picadelas de mosquito acarretam, não são poucas as vezes em que dou por mim a pensar no que de errado se passa comigo, ao ver-me em cima da cama ou de uma cadeira com um chinelo na mão direita e uma espátula na esquerda (esta da espátula é a brincar, se bem que, tendo sonambulismo, tudo pode acontecer) a tentar detectar algum insecto de espírito aventureiro. E depois chego à conclusão de que o que preciso é de passar uns dias ao relento, como aqui, em que não existiam paredes, mas sim restos de mato, silvas, ramos, folhas e alguns insectos mortos que ajudavam a forrar os sacos-cama. Ahh…, boa vida…. Pensávamos apenas em onde dormir, na comida; lidar com gente com a qual nunca tínhamos contactado, nem voltaremos a contactar, parece atrair um lado generoso na nossa forma de ser, que noutras circunstâncias teima em permanecer anónimo. Mas como éramos um grupo isto só aconteceu nos acampamentos e noutros locais em que “éramos atendidos”. Mostrámo-nos bastante mais receptivos. Era fixe haver aulas assim – num transporte colectivo, a turma a percorrer 20 km por dia, cada paragem uma aula, leccionada por alguém de cada localidade. Se o edifício escola é demasiado claustrofóbico, os alunos passam lá demasiado tempo…feito! Mas depois ensinar matemática ou gramática ia ser impossível. A comunicação oral cada vez troça mais das convenções gramaticais, e a matemática simplesmente teria menos interesse, é uma disciplina que tem que ser encarada com uma postura desafiadora e mais ansiosa, porque querem-se resultados na hora, ao contrário de outras experiências, nas quais os nossos impulsos só mais tarde serão satisfeitos. A vontade de comer decresce consideravelmente, já que não estamos a viver uma rotina. No entanto, devo reconhecer que fazer isto de carro fica bastante dispendioso, mesmo que se dividam os custos. Há que encontrar novas formas de passear…


O último dia na estrada.

Paredes de Coura estava mais solarenga do que nunca. A vontade de lá ficar era imensa, apesar da crescente entrada de novas pessoas, que iriam tornar o recinto intransitável. No entanto, à tarde, no palco ainda virgem em concertos, houve lugar para a leitura de poesia e textos de carácter intervencionista. A dada altura aquilo já cansava, porque uma voz ao microfone torna-se maçuda, faz lembrar as instruções ouvidas através dos altifalantes, nos campos de concentração. Mas um deles apanhou-me de surpresa, porque, na altura, eu pensava que as pessoas liam coisas escritas por si, como num concurso que visa estimular a nossa criatividade. No entanto, este texto, em português, foi lido por um rapaz de trinta e poucos anos, óculos e barba farfalhuda. Pode dizer-se que representava a primeira pinga de Avante que está sempre patente nestes festivais. Ainda para mais, escolheu, como texto para ler, o Masters of War do Bob Dylan. Re-baptizado “Senhores da Guerra”, e embora não lhe perdoe o facto de ter omitido a verdadeira origem autoral do texto, não podia deixar de subscrever escolha:



Senhores da Guerra

Venham senhores da guerra
Vocês que fabricam todas as armas
Vocês que fabricam os aviões da morte
Vocês que fabricam as grandes bombas
Vocês que se escondem atrás de paredes
Vocês que se escondem atrás de secretárias
Apenas quero que saibam
Que consigo ver através das vossas máscaras

Vocês que nunca fizeram nada
Além de construir para destruir
Vocês abusam do meu mundo
Como se fosse o vosso brinquedo
Vocês colocam uma arma nas minhas mãos
E depois escondem-se da minha vista
E voltam-se e correm para longe
Quando as balas voam com rapidez

Como um Judas que chega a velho
Vocês mentem e enganam
Uma guerra mundial pode ser vencida
Querem vocês fazer-me acreditar
Mas eu vejo através dos vossos olhos
E vejo através do vosso cérebro
Tal como vejo através da água
Que escorre pela minha testa

Vocês apetrecham os gatilhos
Para outros dispararem
Depois relaxam e observam
Enquanto o número de mortos vai subindo
Vocês escondem-se nas vossas mansões
Enquanto o sangue de jovens
Escorre pelos seus corpos
E é enterrado na lama

Vocês lançaram o maior medo
Que poderíamos temer
O medo de trazer crianças
Para este mundo
Por ameaçarem o meu bebé
Sem nome e por nascer
Vocês nem sequer são dignos
Do sangue que vos corre nas veias

Mas o que é que eu sei
Para falar desta forma
Vocês podem dizer que eu sou jovem
Podem dizer que eu não tenho um curso
Mas há uma coisa que eu sei
Apesar de ser mais novo do que vós:
Nem mesmo Jesus
Perdoaria o que vocês fazem

Deixem-me perguntar-vos uma coisa
O vosso dinheiro é assim tão bom?
Será que vos pode comprar o perdão
Pensam que sim?
Eu penso que vocês vão descobrir
Quando a morte vier cobrar a sua dívida
Que todo o dinheiro que fizeram
Nunca poderá restituir a vossa alma

E eu espero que vocês morram
E que a vossa morte chegue cedo
Vou seguir o vosso caixão
Num pálido final de tarde
E vou ver-vos a descer à cova
Onde vão dormir o sono eterno
E vou ficar junto ao vosso túmulo
Até ter a certeza que vocês estão mortos.


v.o. Bob Dylan


Hora de arrumar tralha. Ainda tivemos um encontro imediato com o proprietário do terreno onde ficámos. Parece que não há um pedaço de terra que não pertença a alguém. Mas o homem foi bastante porreiro, julgo que não pretendia fazer dinheiro aproveitando-se do festival, senão tinha dado um jeito naquele matagal.
O Domingos está na Alemanha. Uma alma vadia como aquela, o mais provável é aparecer por aí para fazer escala e voltar a desaparecer.A Ana, sempre que pode, agarra no puto e vem até ao Porto, assim como o Filipe. Ficam em casa do Valter, homem irrequieto e com quem há sempre alguma coisa para fazer
Assim que saímos de Paredes, já nos carros, começa a chover. A chuva estava destinada a acompanhar o nosso estado de espírito durante a assimilação do facto de o fim estar próximo. Fizemos a viagem mais calados do que o habitual. Setembro estava à porta e havia que regressar ao trabalho e às rotinas sociais e familiares. Hora de hibernar, em breve voltaríamos a pisar verdes campos debaixo de um sol radioso.


FIM (ou talvez não…)

quinta-feira, março 13, 2008

Carta de um comatoso (Rose, Slash)

Ei encontro-me em estado de coma
e acho que não quero…
voltar para o mundo outra vez

até estou a gostar deste estado de coma
porque ninguém me vai obrigar a…
voltar para o mundo outra vez

agora sinto que estou a flutuar
não sinto qualquer pressão
e gosto de assim estar
mas do meu corpo vem a reacção
tentando fazer com que eu volte…
para o mundo outra vez

em profunda suspensão
na escuridão dum mar vasto
espero pela iluminação
tenho os ossos pendurados no mastro
bem, parti num barco à vela

eu podia viver agradavelmente
enquanto amigos me ligavam com regularidade
mas para com eles fui indiferente
quando tudo o que precisava era claridade e…
alguém que me dissesse o que raio se está a passar!
foda-se!

cada vez mais e mais distante
é espantoso quanto tempo ficamos
num mundo criado pela nossa mente
num mundo que está cheio de merda.

por favor entende esta dor no meu peito
estou a fugir duma desilusão mortífera,
de todos os meus sonhos desfeitos
mas esta investida infrutífera
não consegue calar todos os meus gritos
e estou à espera na encruzilhada

à tua espera
à tua espera
onde estás…

(ninguém me vai incomodar
ninguém me vai foder o juízo
não consigo perceber o porquê de toda esta luta
mas é tão agradável aqui à beira-mar
gostava que pudesses ver isto
porque não há nada para ver
aqui estou em paz e estou feliz

nada a ver com o mundo onde vivia
onde nunca quis viver…)

Bum! Bum! (Choques eléctricos – Reanimação cárdio – pulmonar )

ya vive a tua vida como se fosse um coma
do qual não consegues acordar
diz-me lá porque o haveríamos de desejar
com todas essas razões é difícil acreditar

mas quem sou eu para te dizer
que vejo alguma razão pela qual devas permanecer
talvez todos estejamos melhor sem ti

tens um bilhete de ida
na viagem da tua vida
tens um bilhete de ida
para o... teu suicídio

tens um bilhete de ida
e não sais daí vivo

e toda esta convivência insensível
a qual te deixou ao frio e ao vento
não serve de grande consolo
quando te sentes gasto pelo tempo
mas se tens um “lar doce lar”
então há histórias pra contar
não precisas de as contar a um psicólogo
mais ninguém pode devolver a tua sanidade


tens a tua mente presa no prólogo
arriscaste a vida numa história sobre humanidade
mas ninguém fez a arma disparar
apenas encostaram-se a um canto
eles estarão lá à beira-mar
enquanto acenam adeus com desencanto
eles estarão a ligar de manhã
pendurados ao telefone noite e dia
estarão à espera duma resposta sã
quando tu sabes que a hora de atender é já tardia
e quando os sinos pararem de badalar
não foi por culpa de ninguém excepto a tua
houve sempre sinais subtis que decidiste ignorar
avisos veementes que mostraram a realidade nua
e tudo isso tu devias ter antecipado
mas foi-te concedida demasiada liberdade

por vezes ficamos tão cansados de esperar
por uma forma de passar o nosso tempo
e é tão fácil ser sociável
é tão fácil ser fixe
ya é fácil estar esfomeado
quando não tens nada a perder
e quem me dera poder ajudar-te
na busca do procuras encontrar
mas ainda estou aqui à espera
a visionar repetições da minha vida
quando atinges o ponto de ruptura
sabes que ainda vai demorar algum tempo
a sarar as memórias feridas
que outro homem iria precisar
apenas para sobreviver.