sábado, junho 28, 2008

Maradona

Para quem não liga muito às coisas da bola, este foi um futeboleiro que caiu nas malhas da droga, fruto, certamente, de uma certa incapacidade psicológica para lhe resistir. Mas o que muitos não sabem é que Maradona deixou de ser criança aos 15 anos, fruto, certamente, do enorme talento que nos proporcionou uma obra artística irrepreensível; Muitos também não sabem da pesada carga simbólica que ele sempre carregou aos ombros: Defender uma Argentina que havia perdido filhos na guerra das Malvinas, ilhas que a Inglaterra colonialista havia tomado por força e das quais não queria abdicar, o que elevou aquele jogo dos 1/4 final do México 86 ao estatuto de épico, devido ao golo marcado com a mão e, sobretudo, àquele em que ele deixa meia Inglaterra pra trás desde o meio campo; Defender uma Nápoles e um sul de Itália carenciados, com reputação de campónios e mafiosos, isto, claro, aos olhos dos ricos de Turim e Milão; Finalmente, como que um epílogo destas duas batalhas, surge o Mundial organizado por uma Itália sedenta de vitória, 4 anos depois do mexicano: o 1º jogo opõe Argentina e Camarões, na cidade de Milão. Os milhares de milaneses que enchiam o estádio aplaudiam os Camarões e vaiavam os argentinos, reservando insultos especiais para um certo jogador do Nápoles...A Argentina perde, Maradona felicita os adversários, mas não deixa de dar uma última prova da sua sagacidade e audácia: "Perdemos bem. Mas saio feliz, porque pela primeira vez vi os milaneses a não serem racistas..." A Argentina perde a final com a Alemanha, depois de eliminar a... Itália.

Aliás, todas as suas entrevistas e intervenções davam conta de um homem a suportar o peso ideológico e desportivo que o futebol acarreta. Insurgia-se contra as elites do poder, contra uma certa hipocrisia das leis do jogo e da sociedade em geral (o Papa J.Paulo II criticou-o pelo dinheiro gasto no seu casamento. Maradona respondeu: "pois, mas uma vez fui ao Vaticano e reparei que os tectos eram de ouro..."). No futebol actual só J. Mourinho lhe chega aos calcanhares. Porque, tal como Diego, também ele tem ao seu lado o que mais interessa neste deporto: os praticantes. Cristiano Ronaldo é muito bom, mas há que contextualizar: só diz asneiras e não tem a capacidade de liderança que o índio argentino já tinha aos 18,19. E o que Ronaldo faz com uma bola Diego fazia com uma laranja. Maradona meteu-se na droga ainda jovem, mas a maior parte dos drogados que conheci sempre me geraram compaixão pela sua sensiblilidade. Os colegas e os adversários adoravam-no, viam nele um líder e um capitão que nunca se escondia tanto no jogo como fora dele e estava sempre pronto a aceitar mais responsabilidades do que aquelas que lhe eram devidas. Rui Zink disse uma vez que o papel social de Maradona é tão complexo que merecia ser estudado nas Universidades. Estamos a falar de um míudo que de repente foi lançado às feras sem qualquer tipo de protecção, como em Barcelona, o seu primeiro clube fora da Argentina, clube implacávél no que toca ao profissionalismo dos seus atletas, por mais jovens que sejam. Digamos, faltava-lhes um Alex Ferguson. E a forma como esse míudo se tornou um gladiador vitorioso, capaz de contagiar todos com sua alegria pelo jogo. Há dois ou três anos ia perdendo a última batalha, mas felizmente o seu coração resistiu.

Não querendo fazer aqui uma tese, resta-me perguntar se Diego Armando Maradona terá sido o último futebolista romântico, antes da globalização e dos milhões que imperam no futebol e na sociedade actual.

Aqui fica uma humilde homenagem minha:

"Peito de pombo, cheio de ar
Cabelo rijo como carapinha
Um futebol que para sempre vou recordar
Um pé esquerdo que era uma ventoinha

Homem com sonhos de criança
Criança com arte de homem
Campeão no auge da confiança
Tinha o que os outros não têm

Nápoles, cidade triste e danada
Por camponeses e pobres habitada
Renasceu após a sua chegada
E viveu a sua época dourada

Passes e remates milimétricos
Para os adversários argumentos tétricos
Recepções e dribles diabólicos
Da perfeição no jogo simbólicos

Mas o jogo chega ao fim
Resta continuar a vida de mortal
Putas e coca é algo ruím
Até Cristo teve a tentação carnal

Obrigado pelo êxtase
Do futebol total foste a síntese
O companheirismo, o espectáculo, a alegria
Havemos de nos reencontrar um dia.

sexta-feira, junho 13, 2008

Cap. 2: O sol não brilha só na T.V.

Telma dormiu, sonhou, e acordou para nunca mais ver a escuridão da noite.
Após séculos de desenvolvimento tecnológico, chegara finalmente o teste final à supremacia humana sobre a natureza. A diminuição da espessura da camada do ozono revelar-se-ia o terror planetário que os mais pessimistas já haviam aventado. O Canadá, há 25 anos atrás, foi a primeira região a sofrer as convulsões mais violentas; os E.U.A., temendo a proximidade, deram os primeiros passos num possível e provável plano de adaptação às novas condições. Os dias alongavam-se, as noites eram curtas. Para surpresa da comunidade científica, a radiação ultravioleta revelou-se dócil quando comparada com o alargamento do espectro de luz visível. Os cancros de pele, a destruição das proteínas, do ADN, as alterações irreversíveis nos sistemas imunitários e na vida biológica não eram nada comparados com o que um dia de 24 horas de sol pode causar.

Quando cheguei a casa depois de mais um dia de trabalho encontrei a Telma a rezar. Fiquei um pouco embaraçado, mas mesmo assim não fui capaz de tirar os meus óculos escuros, ainda pendurados nas minhas orelhas. Tal como ela, também eu estava a desenvolver um complexo depressivo relacionado como a falta do olhar humano. A ironia aqui patente é que, por muito eficaz que seja um olho, este não consegue funcionar na ausência da luz. Antes esta movimentava-se em linha recta, por isso se observássemos um objecto iluminado por uma lanterna e puséssemos algo opaco entre os nossos olhos e o objecto, a luz não passava. Isso era dantes. A influência dos raios ultravioletas criou um novo espectro de luz que nos envolve tal qual o ar que respiramos, daí a ausência da noite, mesmo com a terra a girar. Mesmo sem lhe perguntar percebi que Telma recordava os primeiros meses em que a visão disparou os nossos sentimentos. Não foram os nossos empregos nem a família a ditar a nossa aproximação. Foi o modo como nos olhámos e amámos sem trocar uma palavra. Rezar foi o menor dos efeitos causados pelo consumo excessivo de anti depressivos. Era uma psicose controlada, mas transformou-a em alguém que estava fechada numa redoma onde a tanto a luz do sol como a luz da sua alma estavam a apagar-se lentamente.

“Um porta-voz oficial do projecto Human Light anunciou que os esforços conjuntos levados a cabo pela N.A.S.A. e pela A.E.E. atingiram um ponto alto esta manhã, ao verem concluído o período experimental do satélite Steve Jobs, o qual terá uma gigantesca capacidade de ultrarefracção estratosférica, que impedirá uma chuva de raios ultravioleta sobre o nosso planeta, garantindo, mesmo assim, um aproveitamento da energia solar em beneficio das centrais nucleares e eléctricas.”

Uau! As pessoas estavam a percorrer um caminho sinuoso para manterem a sanidade mental, no entanto os governos haviam unido esforços a fim de manterem o bom funcionamento das infra-estruturas produtivas. E mais, com a cada vez mais abundante energia solar, os locais de produção passaram a ser abastecidos durante 24 horas por dia, o que reduziu para metade a taxa de desemprego ao nível mundial, aumentando 3 vezes a produtividade e reduzindo um terço dos gastos na produção. Deixaram de ser necessárias técnicas de aprovisionamento, já que qualquer compra era feita através de serviços online, assim como pontos de venda, devido à chegada das compras ao domicílio. Está claro que o petróleo ainda mantém a sua primazia no que diz respeito às fontes energéticas, mas agora não é um carro ou uma máquina que queremos a trabalhar, mas sim o nosso cérebro. Infelizmente, demasiada exposição à luz solar afectou as células cerebrais de grande parte dos seres humanos. O sistema nervoso central funciona com a ajuda do líquido cefalorraquidiano, o qual irriga uma parte do cérebro. Ora esse líquido foi gravemente afectado com a prolongada exposição à luz solar. Mas o petróleo é composto por átomos de carbono e hidrogénio, o que permitiu desenvolver um tratamento baseado nestes elementos com vista a suprir a falta do líquido cerebral: Petrocer. Comercializado em pequenas latas, tornou-se a droga legal mais abundante, seguida de duas ou três marcas de antidepressivos. No entanto, os efeitos secundários não eram inocentes… Quando me foi comunicado que era estéril, não senti grande comoção ou surpresa. Eu partilhava a opinião de pensadores como Rasim ou Teodoro, sobre a sobrecarga de população que o planeta sofria há já vários séculos. O excesso de pessoas a exercerem aquela pressão sobre os recursos disponíveis era a grande causa para os problemas sociais, económicos e ambientais. Telma também não se sentiu muito afectada. Apesar de tudo, ainda éramos felizes. Pelo menos mais felizes do que boa parte da população.
Nesta era, as cidades eram o palco de algumas mudanças que diminuíam a espécie humana a um ponto em que esta perdeu a sua identidade histórica para se adaptar às novas condições: os olhos constantemente vedados pelos óculos escuros; o aumento da carga de trabalho para aumentar a produtividade; a ausência de actividade lúdicas e de inter-relacionamento pessoal; a possibilidade de colocar os filhos na “Matur”, uma instituição que acolhia bebés de famílias abastadas, na qual estes permaneceriam durante 15 anos, altura em que atingiam a idade adulta, permitindo aos pais trabalharem sem a preocupação de exercer actividades pedagógicas não lucrativas.
Para quem já nasceu na era dos óculos escuros, o sistema de acasalamento passou a ser ditado pela circunstância profissional e financeira, ou seja, cada cônjuge tinha o dever de retirar o máximo do potencial do outro, tal como numa fila de ciclistas em que o último está sempre a ir para a frente. Portanto eram feitos estudos psicotécnicos na Matur, onde eram dadas às crianças um leque de opções profissionais do qual haveriam de escolher uma. A partir dessa escolha, a criança era condicionada a pensar, vestir, agir, sentir como tal. Quando saísse aos 15 anos estava já pronta para exercer o seu papel na sociedade. A esta nova espécie emergente chamou-se humatónomos. Mas nem todos os humanos estavam transformados. As itinerantes feiras do passado ainda mantinham alguma da boémia e da inconstância própria dos seres humanos. Mas estas eram sazonais e nómadas. Mas ainda havia comunidades inteiramente saudáveis, como eu viria a perceber numa viagem a África, agora declarada oficialmente como o “caixote de lixo do mundo”.

quinta-feira, junho 12, 2008

CAP. 1: O sonho do Barman: o relâmpago vem antes do ruído

Esta é a história por trás do “tenha uma noite fantástica”, de Baltazar Gomes

Ser completamente honesto com ela nunca era fácil. As suas reacções deixavam-me à chuva, ensanguentado e com a visão enevoada pela poluição do mundo que eu era forçado a encarar: olha à tua volta, dizia ela, olha o que tens à tua espera! Toda esta imundice vestida com fato de gala, um oráculo profanado pela alma mais caridosa e incorruptível, o que julgas que encontrarás nesse Tártaro da tua liberdade?
Telma tinha razão. Onde poderia eu ir? Com os galopantes preços da gasolina, seria quase impossível chegar a nordeste a tempo da feira. A extinção dos transportes públicos, outrora a quintessência da superioridade humatónoma, tornou-se um fardo demasiado pesado para quem aspirava a ser feirante. Aspirava, sim, pretérito…
No entanto, eu treinava em casa. Arduamente, mas com muito gosto. E muitas vezes partilhava esse prazer com a Telma, de forma mais orgânica e inconsequente. E um sorriso seu fazia tudo o resto valer a pena, tal qual como naquela noite em que falámos pela primeira vez...

Toda a minha caixa de ferramentas desejava-a ardentemente desde que a tinha visto num comboio, no tempo em que estes eram necessários. Mas nesse ano eu estava já contaminado, razão que, embora a doença ainda não impedisse a auto determinação, acabou por influenciar o meu julgamento e posterior bloqueio comportamental. Pôrra. O que eu estava a perder! No entanto, após meses de viagens e intersecções oculares, fui presenteado com aquilo que todos os humanos ainda sãos desejariam ver por uma vez na vida: o sorriso da Telma. Eu gelei, o que podia fazer? Mas ainda assim consegui alargar os cantos da minha boca durante dois ou três segundos, o suficiente para aliviar-me e devolver-lhe alguma daquela tensão. Uii! Escusado será dizer que nesse dia voltei para casa com a roupa a fervilhar. Todos os poros da minha pele assemelhavam-se a géisers, o meu cérebro disparava imagens constantes daquele momento e de outros que nunca tinham acontecido nem nunca viriam a acontecer…estava num completo êxtase…sentia a sua falta, e nem sequer a conhecia.
Não admira que eu tenha caído que nem um patinho. Na noite em que a conheci tudo foi perfeito. Eu não pensei que tivesse sido perfeito, mas mais tarde ela confessou-me que se sentiu um pouco idiota ao falar comigo, e isso demonstrou-me que há um grande poder na simples experiência das coisas e das sensações. E quanto confuso e perturbador esse poder é. A situação era típica: o gajo estava a chateá-la, ela desata a disparatar “deixa-me em paz, não há homens de jeito…”, sobe as escadas e depara-se comigo: “não há homens de jeito, pois não?” Eu só consegui abanar a cabeça. Adivinhem em que direcções. Ainda nem a conhecia e sentia que já estava a pagar o preço do amor irreflectido. Então resolvi atirar-lhe uma frase do John Lennon, que eu conheci através de uma personagem do The Office: “ a vida é aquilo que acontece enquanto estamos demasiado ocupados a fazer planos.” Não omiti a origem autoral desta filosofia presente na música, “beautiful boy” (dedicada a Sean), e, nessa mesma noite, antes que ela adormecesse, telefonei-lhe, só para lhe dar a ouvir aquela doce melodia…


quinta-feira, junho 05, 2008

Tortilla

Em tempos partilhei casa com a Rebeca, uma espanhola de Ponferrada. A partilha era meramente contratual, já que ela vivia com o namorado. Mas para iludir os pais precisou de um endereço que servisse de fachada à vivência "conjugal". Bom, a situação era estranha e ainda hoje estou para perceber o que se passou, já que os pais viviam a mais de 200 km. No entanto, ela deixou um legado culinário que me acompanha até hoje.

A tortilha espanhola é boa.

Para criá-la, o mais importante é ter batatas, óleo/azeite, a tecnologia do fogo e ovos. Convém também, e isto já depende dos gostos, ter cebolas, pimentos, tempêros, chouriço, salsicha, salsa, restos, enfim, tudo o que se quiser meter lá pra dentro.
Eu gosto assim:
Encho metade de uma frigideira de tamanho médio com óleo, depois bastam 2 batatas médias, algumas rodelas de chouriço ou salsicha,uma cebola média, um pimento, folhas de salsa, um dente de alho...tudo isto cortado finamente e metido lá pra dentro. Deixo cozinhar em lume médio durante cerca de 10 min., vou temperando, mexendo, pensando na próxima Champions sem o Porto, procurando o coador. Quando a mistela estiver morna, há que retirar a gordura. Enquanto o coador faz das suas, bato 2 ovos. Acendo o lume, volto a colocar a mistela na sertã, misturo-a com os ovos mexidos, conferindo a consistência necessária. Vai-se apalpando com o garfo, vai-se abanando a sertã, para ver se a tortilha já está compacta. Depois, com a ajuda de um prato, vira-se o lado. Mais um minutinho e tá pronta.