terça-feira, outubro 14, 2008

Desinfestado no Limbo

                                 

Cerpin Taxt encontrava-se acima da oscilante errância do tráfego rodoviário, sentia os joelhos a fraquejar. Mergulhado numa obscura dessincronização, sabia que o seu tempo aqui estaria em breve terminado com uma hemorragia interna percebida através da aberração da sua presença cadavérica. Não mais ele carregaria a seus ombros o peso da paixão. Jamais se reconheceriam descendentes seus. Afluências auto motrizes eram lançadas através das veias debaixo da sua pele. Seria este o único caminho que ele poderia encontrar? O suor ornamentava a margem da sua sobrancelha, já não era possível voltar atrás. Os seus maxilares tilintavam uma gaguez gélida, o seu estômago inchava devido aos desconfortantes arrotos, demasiado nervoso para olhar para baixo, olhar em direcção à convidativa colisão com o cimento. Ele ofereceu a si próprio nada mais do que esta escolha.

Entre duas montanhas que reclamavam uma qualquer irreflectida verdade bíblica, Cerpin era sensato, como se tudo aquilo tivesse sido devolvido por um cliente insatisfeito, um atleta medalhado com tremores reumáticos. Quando levantado, este último prémio iria rodopiá-lo e arrastá-lo pela lama. Ele sempre conviveu com a negação, mas desta vez não queria esperar cá fora enquanto a festa continuava sem ele.
A estrada que adornava o viaduto pulsava uma torrente de reacções repelentes nos olhares. Os carros passavam, pasmados…”quem é aquele caralho, armado em trapezista?!”, pensava um condutor, a toda a velocidade. “Mãe, olha, aquele menino vai brincar!”, gritava uma menina de treze anos, tentando captar a atenção dos seus pais, numa velha carrinha cheia de material agrícola. Algures nos quilómetros daquela estrada, a “orquestra” continuava a tocar. Molas enrolavam-se furiosamente nos tendões das suas pernas…elas estavam prontas. As suas lágrimas desintegravam-se no ar vespertino, agora ninguém conseguia evitar isto. Ele vagueava por estrofes em analepse, excluídas desta realidade, o seu corpo tomava forma…uma meia-lua morta num mergulho de Fevereiro…um emblema para todos verem…um soturno composto de fracturas, pacientemente aguardando pela abertura do portal…caindo a pique, desejando ardentemente uma resolução muda (“vou mostrar-lhes como é…”). Beijou o vento fraco que roçava a sua face, defecando um verso que cantava “yo ya me voy, y nadien me recordara”. Sorriu do alto do seu pedestal, aguardando a oportunidade, murchando em pecado…o gato entre porcos podia agora gatinhar de volta para a sua verdadeira família. Talhando um último suspiro, faiscando diamantes nos faróis, para sempre manchados com selos cor de vinho.

Cerpin sempre foi um pouco possuído pelos seus rabiscos quiméricos. Entre os intervalos para o almoço e durante as aulas, talvez até no seu sono, tu irias dar com ele a desenhar neo-culturas, doentes e grotescas. Aquele foi o portal que ele criou, sujando as mãos, arrancando os cabelos, momentos de inspiração aguardando nas asas. Isto servia bem os seus propósitos, já que estaria desnutrido sem este escape.
Tão vívida era a forma como eles lhe falavam, leais à sua folha. Ele nunca reparou se mais alguém os conseguiria ouvir…também não interessava, porque o mais importante era o que eles diziam…e como o diziam. Estavam mutuamente apaixonados desde o diagnóstico dos seus distúrbios. Ele bateu em portas que o resto do mundo sabia não existirem. Blocos de notas em espiral emprestando variedade à mediania…Um jogo espiritual que evoluía penosamente, revestido de uma cinza rasa esperando pela rejeição, sempre à espera de uma deficiência. “Un juramento sin forma,...me escape de las montanias, salte veneno”...uma escápula que falhou o tiro de partida. Podes dizer que ele era chicoteado pelo calão da sua quimera. Cerpin Taxt, sempre o apaixonado saco de pancada...E disto nasceu uma tosca construção de desconcertantes hieróglifos. Ele desejava ser desejado. Ansiando por resultados, uma face cerrada, um expatriado deformado. Eles foram feitos um para o outro. Eles definiam-se mutuamente, e em breve seriam um só.

                              

Mas, espera...Não terá isto já acontecido antes? Um rasto de muitos anos. Relembrando os eventos, havia um rancor nos diversos juízos. Um projecto de déspota, desconhecido até de si próprio...ele começou a descarrilar. O corcovado de sangue frio seguro por uma ligadura eléctrica estava sempre a ter dificuldades em permanecer vivo, quanto mais remediar os estragos no epicentro dos seus terramotos. Isto havia acontecido antes. Numa tarde opaca, defendendo-se após ter cometido um erro, Cerpin foi apanhado precavido, em sentido, na linha de fogo de uma batalha feroz. Um barril selado de ebriedade encontrou o seu caminho através da raiz dos seus próprios cabelos, atingindo-o em cheio no crânio. Uma enxaqueca para curar todas as dores de cabeça. Talvez estivesse a pedi-las? Talvez fosse a desculpa que necessitava para atravessar a fronteira das clarividências domiciliárias. Através de aneurismas litúrgicos, no púlpito estavam os meios. Pelos estilhaços de uma altercação dolorosa, ele deixou o ponto de impacto, sim,  deixou-o partido para tratar as suas feridas. Talvez ele tivesse cometido um erro, mas erros são tudo aquilo de que os seus sonhos são feitos.
Flexíveis e quentes, os cobertores taparam o seu corpo. Aquela mão cheia de morfina que a sua mãe havia deixado quando morreu viera mesmo a calhar. Este foi o chuto que marcou o início. Dentro e fora da realidade por uma semana até ao fim, a sua embaixada viveria na infâmia. Seria este o cenário no qual eles o contactaram pela primeira vez, a ele, o déspota em projecto, a lutar para se manter vivo.

Ele havia sido nomeado...rotulado e colocado na profunda inundação de pescoços torcidos, injectando-se às torrentes para o alívio da sua confusão. De fora, nós havíamos observado o seu recém-adquirido orgulho derrapante. Um verdadeiro príncipe entre os mortos-vivos. Um cruel no limite da sua graça, asfixiando um oráculo de musas, preso numa amputada inoperância arquitecto-tecnológica cujos ferimentos superficiais sentiam-no a baquear para o chão cada vez que bandos de contusões e obstáculos enterravam-no fanáticamente no seu atordoamento. Com a sua armadura de pele quebrada, ele tinha-se agora tornado a carcaça da caricatura imune às vergastadas no seu esfolado braço direito, destinadas a corrigir a imagem de um pedinte a quem foram dadas roupas usadas. Alguém que havia bebido com os mochos, sob o chuveiro de lacerações que caiam a bom som e eram tão traiçoeiras como areias movediças. Estava empilhado numa onda gigante de multidões, tornando a sua evolução imperialmente sinistra. Os corpos não aguentam muito mais desgaste e rasgões antes do colapso. 


                                      de-loused in comatorium   1ª parte
                                      tradução: Pedro Sanguessuga

1 comentário:

Medeia disse...

Onde tens andado malvado? Eh pa, tu está calado, este CD é muito bom, viciante, no mínimo! São cerca das 3.30h da madrugada e eu estou pedrada a ouvi-lo, do melhor! Beijinho!