sexta-feira, junho 13, 2008

Cap. 2: O sol não brilha só na T.V.

Telma dormiu, sonhou, e acordou para nunca mais ver a escuridão da noite.
Após séculos de desenvolvimento tecnológico, chegara finalmente o teste final à supremacia humana sobre a natureza. A diminuição da espessura da camada do ozono revelar-se-ia o terror planetário que os mais pessimistas já haviam aventado. O Canadá, há 25 anos atrás, foi a primeira região a sofrer as convulsões mais violentas; os E.U.A., temendo a proximidade, deram os primeiros passos num possível e provável plano de adaptação às novas condições. Os dias alongavam-se, as noites eram curtas. Para surpresa da comunidade científica, a radiação ultravioleta revelou-se dócil quando comparada com o alargamento do espectro de luz visível. Os cancros de pele, a destruição das proteínas, do ADN, as alterações irreversíveis nos sistemas imunitários e na vida biológica não eram nada comparados com o que um dia de 24 horas de sol pode causar.

Quando cheguei a casa depois de mais um dia de trabalho encontrei a Telma a rezar. Fiquei um pouco embaraçado, mas mesmo assim não fui capaz de tirar os meus óculos escuros, ainda pendurados nas minhas orelhas. Tal como ela, também eu estava a desenvolver um complexo depressivo relacionado como a falta do olhar humano. A ironia aqui patente é que, por muito eficaz que seja um olho, este não consegue funcionar na ausência da luz. Antes esta movimentava-se em linha recta, por isso se observássemos um objecto iluminado por uma lanterna e puséssemos algo opaco entre os nossos olhos e o objecto, a luz não passava. Isso era dantes. A influência dos raios ultravioletas criou um novo espectro de luz que nos envolve tal qual o ar que respiramos, daí a ausência da noite, mesmo com a terra a girar. Mesmo sem lhe perguntar percebi que Telma recordava os primeiros meses em que a visão disparou os nossos sentimentos. Não foram os nossos empregos nem a família a ditar a nossa aproximação. Foi o modo como nos olhámos e amámos sem trocar uma palavra. Rezar foi o menor dos efeitos causados pelo consumo excessivo de anti depressivos. Era uma psicose controlada, mas transformou-a em alguém que estava fechada numa redoma onde a tanto a luz do sol como a luz da sua alma estavam a apagar-se lentamente.

“Um porta-voz oficial do projecto Human Light anunciou que os esforços conjuntos levados a cabo pela N.A.S.A. e pela A.E.E. atingiram um ponto alto esta manhã, ao verem concluído o período experimental do satélite Steve Jobs, o qual terá uma gigantesca capacidade de ultrarefracção estratosférica, que impedirá uma chuva de raios ultravioleta sobre o nosso planeta, garantindo, mesmo assim, um aproveitamento da energia solar em beneficio das centrais nucleares e eléctricas.”

Uau! As pessoas estavam a percorrer um caminho sinuoso para manterem a sanidade mental, no entanto os governos haviam unido esforços a fim de manterem o bom funcionamento das infra-estruturas produtivas. E mais, com a cada vez mais abundante energia solar, os locais de produção passaram a ser abastecidos durante 24 horas por dia, o que reduziu para metade a taxa de desemprego ao nível mundial, aumentando 3 vezes a produtividade e reduzindo um terço dos gastos na produção. Deixaram de ser necessárias técnicas de aprovisionamento, já que qualquer compra era feita através de serviços online, assim como pontos de venda, devido à chegada das compras ao domicílio. Está claro que o petróleo ainda mantém a sua primazia no que diz respeito às fontes energéticas, mas agora não é um carro ou uma máquina que queremos a trabalhar, mas sim o nosso cérebro. Infelizmente, demasiada exposição à luz solar afectou as células cerebrais de grande parte dos seres humanos. O sistema nervoso central funciona com a ajuda do líquido cefalorraquidiano, o qual irriga uma parte do cérebro. Ora esse líquido foi gravemente afectado com a prolongada exposição à luz solar. Mas o petróleo é composto por átomos de carbono e hidrogénio, o que permitiu desenvolver um tratamento baseado nestes elementos com vista a suprir a falta do líquido cerebral: Petrocer. Comercializado em pequenas latas, tornou-se a droga legal mais abundante, seguida de duas ou três marcas de antidepressivos. No entanto, os efeitos secundários não eram inocentes… Quando me foi comunicado que era estéril, não senti grande comoção ou surpresa. Eu partilhava a opinião de pensadores como Rasim ou Teodoro, sobre a sobrecarga de população que o planeta sofria há já vários séculos. O excesso de pessoas a exercerem aquela pressão sobre os recursos disponíveis era a grande causa para os problemas sociais, económicos e ambientais. Telma também não se sentiu muito afectada. Apesar de tudo, ainda éramos felizes. Pelo menos mais felizes do que boa parte da população.
Nesta era, as cidades eram o palco de algumas mudanças que diminuíam a espécie humana a um ponto em que esta perdeu a sua identidade histórica para se adaptar às novas condições: os olhos constantemente vedados pelos óculos escuros; o aumento da carga de trabalho para aumentar a produtividade; a ausência de actividade lúdicas e de inter-relacionamento pessoal; a possibilidade de colocar os filhos na “Matur”, uma instituição que acolhia bebés de famílias abastadas, na qual estes permaneceriam durante 15 anos, altura em que atingiam a idade adulta, permitindo aos pais trabalharem sem a preocupação de exercer actividades pedagógicas não lucrativas.
Para quem já nasceu na era dos óculos escuros, o sistema de acasalamento passou a ser ditado pela circunstância profissional e financeira, ou seja, cada cônjuge tinha o dever de retirar o máximo do potencial do outro, tal como numa fila de ciclistas em que o último está sempre a ir para a frente. Portanto eram feitos estudos psicotécnicos na Matur, onde eram dadas às crianças um leque de opções profissionais do qual haveriam de escolher uma. A partir dessa escolha, a criança era condicionada a pensar, vestir, agir, sentir como tal. Quando saísse aos 15 anos estava já pronta para exercer o seu papel na sociedade. A esta nova espécie emergente chamou-se humatónomos. Mas nem todos os humanos estavam transformados. As itinerantes feiras do passado ainda mantinham alguma da boémia e da inconstância própria dos seres humanos. Mas estas eram sazonais e nómadas. Mas ainda havia comunidades inteiramente saudáveis, como eu viria a perceber numa viagem a África, agora declarada oficialmente como o “caixote de lixo do mundo”.

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