quarta-feira, abril 16, 2008

O Homem, a Ladeira e o Calhau

No princípio era a Família; e o Homem era deus, padre e rei em sua casa, com a sua mulher e os seus filhos. E o Homem era feliz, sem dar por tal.

E veio a Serpente, e disse: “Come da maça que nasce da árvore da Política, e serás forte entre os outros homens, e a tua família governará as outras famílias.”
E o Homem provou do fruto proibido, e logo entrou em luta com o próximo; e Caím, filho do Homem, foi o pai da guerra civil.
E o Homem não foi feliz.

E veio o Padre, e disse: “O teu mal é o Pecado. Sustenta-me, e eu pedirei dia e noite o teu perdão a deus, e serás feliz.”
E o Padre recebeu a côngrua, levantou o templo e rezou dia e noite; mas o Homem trabalhou, jejuou, suou na fogueira, e não foi feliz.

E veio o Rei, e disse: “O teu mal é a Desordem e a Guerra. Sustenta-me, e eu arrumarei os teus negócios, e vencerei em batalha os teus inimigos, e serás feliz.”
E o Rei cobrou o imposto e montou no cavalo, combateu, conquistou; mas o Homem continuou a trabalhar, a jejuar e a suar; e estropiou-se nas guerras, e bailou nas forcas, e não foi feliz.

E veio o Republicano, e disse: “O teu mal é Deus, e o Padre e o Rei. Sustenta-me, e eu matarei o Rei, expulsarei o Padre, e porei a Razão no altar, e serás feliz.”
E o Republicano embolsou o subsídio, e andou na carruagem, e discursou no Senado e na Praça; mas o homem suou, trabalhou, jejuou na prisão, debruçou-se na guilhotina, e não foi feliz.

E então veio o Socialista, e disse: “O teu mal é o Dinheiro. Sustenta-me, e eu libertarei a Terra e a Fábrica, e adoçarei o trabalho pela Lei.”
E o Socialista recebeu a quota, legislou, expropriou, organizou, regulamentou, inspeccionou; mas o Homem continuou a trabalhar, e jejuou nas folgas, e do suor do seu rosto alimentou os preguiçosos e os inúteis, e não foi feliz.

E veio o Anarquista, e disse: “O teu mal é a Lei: sustenta-me e eu rasgarei a Lei. O teu mal é a Vida: não nasças, e serás feliz”
E o Anarquista almoçou, jantou e ceou no Botequim e voou no aeroplano, e lançou a destruição sobre as cidades; mas o Homem continuou a obedecer à Lei, porque a Lei era a força; e o Homem nasceu, porque a Vida era a força; e o homem quebrou os braços e as pernas, porque a Dinamite era a força. E o Homem não foi feliz.

E veio a morte, e disse: “Vem comigo, descansa em mim; sustenta com o que resta de ti os vermes da Terra, e serás feliz.”
E quando o Homem ia, finalmente, ser feliz, e sentir-se feliz, já o haviam devorado os Vermes da Terra…
…E o Homem foi outra vez feliz, sem dar por tal.

Agosto de 1912.

In: O HOMEM, A LADEIRA E O CALHAU (Breviário de desencanto político) – Agostinho de Campos – Aillaud e Bertrand, 1924.

2 comentários:

Sérgio disse...

Boa Rui! Grande estreia! Queremos mais...

Anónimo disse...

Eh pa, eu so conheço o Pedro, certo é, mas não posso deixar de comentar... Bem, de qualquer das formas, não somos tão distantes como isso... "sardinha", "rocha"... tudo do campo semântico da praia...:)

De resto, este texto da que pensar... seremos eternos descontentes e insatisfeitos, pois não há governação perfeita e Homem não se governa a si mesmo... Mas estes retratos político-biblicos (isso existe?) estão muito bem executados... Continua a postar deste tipo de textos, muito bons...

Andreia Rocha